A história do Bolão, reduto da boemia musical de BH

06/06/2025

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Por: Damy Coelho

Fotos: Divulgação/Luciano Viana, Acervo Pessoal/Lorena Martins, Reprodução/X, UFMG

06/06/2025

Quem entra no Bar do Bolão, no bairro Santa Tereza, região leste de Belo Horizonte, pode pensar se tratar de um botequim clássico. Estão ali as paredes azulejadas, as mesas de madeira maciça e o entra-e-sai de garçons trazendo o melhor da comida de boteco: petiscos, pratos executivos bem servidos e o bom e velho “pão moiado” (pão com molho, em mineirês). 

Mas basta um olhar mais atento para notar que não se trata de mais um bar: atrás do balcão, reluz um quadro com o disco de ouro do álbum Calango (1994) e duplo de platina do Siderado (1998), ambos do Skank. Do outro lado da parede, uma placa do Museu Clube da Esquina reconhecendo a importância do bar para o movimento musical. Próximo dali, no caixa da segunda unidade, a estrela é um troféu do astronauta do VMA (Video Music Awards), da MTV americana, presente de ninguém menos que o Sepultura.

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O Bolão tem mais de 60 anos de história, mas foi como reduto da cena musical mineira que sua fama se espalhou. Músicos do Skank, Sepultura, Pato Fu e até expoentes do Clube da Esquina, como e Márcio Borges, já bateram ponto no local, além dos Raimundos, Dudu Nobre, Neguinho da Beija-flor, Gabriel, O Pensador, entre tantos outros nomes. O bar virou pico dos inimigos do fim que sempre estão prontos para uma próxima saideira, já que é um dos poucos bares da região com cozinha aberta até de madrugada.

Santa Tereza 

O Bolão fica localizado na praça principal do bairro, Duque de Caxias. Por lá convivem – nem sempre, na santa paz – crianças brincando, policiais que caminham até o colégio militar, as senhoras católicas da igreja de Santa Tereza, e nos carnavais, centenas de foliões tomados pelo suor e cerveja.

Assim como o xará no Rio de Janeiro, o bairro de Santa Tereza – o de Belo Horizonte – também é reduto de artistas. Eles circulam pela região desde o início do século XX, quando um grupo comandado por ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade se aventurava em escalar os arcos do viaduto de mesmo nome que liga o bairro ao centro, com 14 metros do topo ao chão.

O amigo dele – outro célebre escritor, Cyro dos Anjos –, em um lampejo de responsabilidade, gritava lá de baixo: “Carlos, não faça isso! Você tem família!”.

Com o passar do tempo, a região ganhou opções de lazer noturno e a prática da escalada urbana foi substituída pelos bares. O primeiro da cidade, o Bar do Orlando, surgiu no mesmo Santa Tereza em 1919 e existe até hoje. Em 1961, veio o Bolão.

Situado em um casarão histórico, o bar é um daqueles empreendimentos familiares comuns no Brasil. Nasce do casal José da Rocha Andrade e sua esposa Maria dos Passos Rocha – por isso, o nome Rocha & Filhos, já que todos trabalhavam no local. Hoje, é comandado pela terceira geração da família, e conta com outras quatro unidades.

Virou Bolão porque esse era o apelido de Zé Maria – um dos filhos, queridíssimo da boêmia belo-horizontina, responsável pelo espaguete capaz de prevenir qualquer ressaca. Com poucas opções de bares que funcionavam madrugada afora, o Bolão logo virou ponto de encontro dos inimigos do fim, de quem estava sempre pronto para uma saideira.

A “saideira”, inclusive, remete ao sucesso do Skank, do álbum Siderado (1998), que foi inspirado pelos encontros dos integrantes no Bolão.

Desce mais uma rodada

Ao entrar no Bolão, você pode ter a sorte de topar com Henrique Portugal, tecladista do Skank. O músico cresceu no bairro, logo, frequentar o Bolão era consequência natural. Batia ponto no bar após voltar dos jogos do Cruzeiro no Mineirão com amigos como Samuel Rosa e Fernando Furtado, que também moravam por ali. “A gente falava: ‘vou para o Bolão, porque vou acabar encontrando alguém lá’. Essa era a grande assinatura do bar: ser ponto de encontro de boêmios no fim da noite”, explica.

O Skank nasceu em uma daquelas mesas de madeira. O lugar foi ponto de importantes decisões da banda, sempre regado a uma cerveja gelada. Como retribuição, deixaram lá o primeiro disco de ouro.

O quadro virou atração, e a banda foi levando mais discos para contribuir com a decoração do local. O Zé Maria ficou até mal-acostumado. “Ele falava assim: vocês ganharam outro disco que vi. Cadê ele para eu pendurar na parede? (risos)”, lembra Henrique.

Aos poucos, o bar foi tomado de presentes de outras figuras ilustres, como o Lô Borges e o Sepultura. “O Paulo [Xisto Jr] deixou um astronauta de prata do VMA lá”, lembra Henrique Portugal. O prêmio viralizou em 2022 no X, no post de um frequentador mais atento que reparou no astronauta brilhante que reluzia em meio aos cacarecos do lugar. 

A vizinhança, o gosto pela música e pelo boteco fortaleceu laços entre o Skank e o Sepultura. O Bolão, afinal de contas, também cumpre esse papel de promover encontros – por mais casuais ou curiosos que possam parecer. “Eu gravei três discos com Sepultura e conhecia muito todo mundo ali”, diz Henrique Portugal. “O Andreas [Kisser] mudou de São Paulo para Belo Horizonte para poder tocar com os meninos, então também morou no Santa Tereza”, lembra. 

“Era aquela coisa da dificuldade, né? O Sepultura era uma banda de um selo pequeno, a Cogumelo Discos, de Belo Horizonte. Um dia, o Max bateu a campainha lá em casa me chamando para gravar umas teclas. A gente já se conhecia porque andava junto de skate”, conta.

Museu musical

No bar também tem uma placa do Clube da Esquina, movimento fundamental da música mineira que nasceu ali pertinho, na esquina da Divinópolis com a Paraisópolis. O jovem Henrique via o Lô Borges circulando pela região. “Ele era o ídolo e eu, um garotinho que morava por ali. Olha pra você ver: tantas histórias da música brasileira nasceram num bairro só!”.

Henrique Portugal ainda pode ser visto circulando pelo bairro que fez parte de sua formação. Outro dia mesmo levou André Frateschi para lá. O músico, que hoje canta Legião Urbana com Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, adorou o tropeiro.

“Eu gosto de voltar para o Santa Tereza para nunca perder as origens, para entender de onde eu vim, mas especialmente para reencontrar amigos e comer no Bolão”, conta. O músico ainda lembra que o Skank batiza um prato do cardápio. Ele mesmo, inclusive, tem um prato só dele: bife acebolado – com o caldo do bife misturado ao arroz -, saladinha de tomate com palmito e batata frita. 

Para falar do menu, convidamos a jornalista de gastronomia Lorena Martins, que mora na região. Para além do carro-chefe da casa, o famoso espaguete ao molho bolonhesa, ela elege seu favorito: o “pão moiado”. “O sabor dele é chocante”, elogia. “Também amo o espaguete, claro, um clássico. Mas quando quero uma comidinha do dia a dia, vou no Rochedão (o PF oficial da casa – com espaguete, a gosto da freguesia mineira). O destaque fica com a batata frita. 

Paulo Xisto costuma comentar que o “pão moiado” remete a memórias afetivas, porque era o que ele comia quando criança. O prato foi uma alternativa mais barata que a família Rocha criou para que os clientes pudessem experimentar o famoso molho à bolonhesa com bastante queijo. 

“O Bolão sempre foi – e continua sendo – ponto de encontro de músicos e demais articuladores culturais de BH”, conta Lorena. “O pessoal fazia shows e caía no Bolão depois. A turma sempre chegava lá e mandava mais uma rodada”. Trata-se de uma geração musical que se renova na cidade e também na clientela, que hoje agrega novas cenas locais, do samba ao rap.

Belo Horizonte conta com duas categorias de bares: aqueles que não resistem às demandas de mercado e aqueles, mais raros, que sobrevivem por gerações. O Bolão é o caso mais emblemático. “É impossível a gente contar a história de Belo Horizonte falar do Bolão”, frisa Lorena. “É uma das poucas opções de comida na madrugada. Não tem erro”.

O caderninho 

As visitas ilustres do Bolão ficaram eternizadas em um caderno preservado pela família. Nele, estão diversos autógrafos e mensagens carinhosas dos clientes mais variados: de Sérgio Reis a João Gordo e Gabriel, O Pensador. Dudu Nobre conta que “atacou um macarrão de primeira qualidade”. Neguinho da Beija-Flor escreveu que o Rocha é “um amigo que a gente muito rápido aprende a gostar”. 

Quem compartilha as imagens conosco é Karla Rocha, sócia-proprietárias do Bolão, sobrinha de Zé Maria. Além dela, a tia, Márcia, o irmão, Carlos Henrique, e os primos Luiz Cláudio e Luciana tocam as outras unidades. “Tanto o livro quanto os discos de ouro na parede agregaram muito ao nosso estabelecimento, ao nosso legado”, comenta Karla. 

Para a proprietária, a alcunha que Belo Horizonte carrega de “capital dos bares” – “se não tem mar, vamos pro bar” e por aí vai –, é seu grande legado. “A cultura de Belo Horizonte se fortalece com os bares e restaurantes. A gente não consegue falar de turismo sem citar a nossa gastronomia e a nossa música”, comenta.

Aos poucos, o Bolão conseguiu agregar o melhor desses mundos. O jeito é descer mais uma rodada.

*Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Noize que acompanha o vinil Rosa, de Samuel Rosa, lançado em 2024.

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06/06/2025

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Damy Coelho