O baixo de Alberto Continentino é uma marca registrada e já esteve na cozinha das bandas de artistas como Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e Bala Desejo. Apesar de Cabeça a Mil e O Corpo Lento — lançado em 17 de junho — não ser o seu primeiro trabalho solo, é neste novo álbum que o artista mostra definitivamente o seu lado compositor e cantor.
Em um projeto cheio de colaboradores, Continentino foi responsável pelas harmonias, melodias, arranjos e produção. As letras ficaram a cargo de Ana Frango Elétrico, Negro Leo, Domênico Lancelotti, Silvia Machete, Quito Ribeiro, Kassin, Tomas Cunhas Ferreira, Gabriela Riley, Jonas Sá, Rodrigo Cabelo e Nina Becker — alguns dos quais também presentes como feats, ao lado de Dora Morelenbaum e Letícia Pedroza.
O groove característico do instrumentista está presente no trabalho, no qual Alberto toca, além do baixo, sintetizadores, programações eletrônicas, piano e violão. As faixas ainda trazem instrumentos de sopro, guitarras e baterias tocados por Guilherme Lirio, Thomas Harres, Joana Queiroz, Orlando Costa, Vitor Cabral, Guilherme Monteiro, Rodrigo Tavares, Duda Lima, Marlon Sette e Jorge Continentino.
Repleto de texturas, Cabeça a Mil e O Corpo Lento experimenta em cada detalhe dos arranjos, em cada timbre e efeito. A voz de Continentino é empregada à serviço das canções, sem sobressair-se em relação aos demais elementos que conversam na base. Luminoso, lembrando o boogie brasileiro setentista e uma tradição da MPB de teclas, não é à toa que o álbum traz faixas com nomes como “O Ovo do Sol”, “Milky Way” e “Manjar de Luz”.
Abaixo, confira o faixa a faixa que Alberto escreveu com exclusividade para os leitores da Noize, abrindo o processo das canções:

1. “Ovo do Sol”: Minha parceria com Domenico Lancellotti começou em 2008, quando ambos fazíamos parte da banda da Adriana Calcanhotto na turnê “Maré”. Ele, assim como a Adriana, Moreno Veloso e Kassin, estavam super afiados nas composições – um grupo que compunha muito e com grande maturidade. Eles me estimularam a começar a compor canções, e nessa fase o Domenico foi o primeiro a escrever letras para minhas melodias. Fizemos uma série de músicas, algumas das quais entraram no meu primeiro álbum, Ao Som dos Planetas (2015). Para “Cabeça a Mil e o Corpo Lento”, ele tinha que ser o letrista da canção que abre o álbum. “Ovo do Sol” retoma a temática dos planetas do Sistema Solar, fazendo uma ponte com meu primeiro álbum. A estética sonora da faixa abre a mente e os ouvidos para as músicas seguintes: uma sonoridade mais escura, grave e velada, com bateria e baixo abafados, viradas eloquentes de Thomas Harres, um coro especial de vozes em harmonia e o solo de um sintetizador analógico. Kassin toca na guitarra o tema que introduz a música e o álbum.
2. “Coral”: Admiro muito as letras de Quito Ribeiro e nunca tinha escrito nenhuma canção com ele, havia esse desejo. Ele tem uma poesia cheia de referências e símbolos da cultura popular brasileira, baiana e africana, algo que sempre me chamou atenção nas parcerias dele com Moreno Veloso. Pedi a ele e a todos os outros letristas que escrevessem de forma livre e abstrata, para que eu pudesse criar uma paisagem sonora condizente. Ele me mandou “Coral”, cheia de imagens marítimas. O verso “Eu não enjoo do seu mar” me sugeriu o motivo melódico, e o resto veio automaticamente. Minha ideia de produção foi construir a levada a partir de um bumbo eletrônico reto e percussões orgânicas. O baixo é um sintetizador, tocando esse primeiro motivo melódico na região grave e se desenvolvendo a partir daí, com muitos espaços. Orlando Costa e Thomas Harres tocaram percussões acústicas, e Orlando também adicionou efeitos eletrônicos que surgem aleatoriamente ao longo da música, junto com alguns samples de percussão eletrônica modular que inseri. Durante a produção, criei uma conexão musical com Dora Morelenbaum, uma amizade que começou nas gravações do disco Bala Desejo. Convidei-a para cantar em duo comigo. No estúdio, foi emocionante escutar a melodia pela primeira vez com a voz dela: um timbre e textura perfeitos, afinação impecável e uma interpretação impecável. Além disso, abri alguns canais para ela improvisar. Enquanto ela improvisava, eu “viajava”, ouvindo um pouco de Milton, Jobim, Brasil e Jazz — tudo o que amo sintetizado em uma voz. A faixa ainda conta com o lindo clarone de Joana Queiroz em contraponto e a guitarra de Guilherme Lirio criando efeitos com delay.

3. “Milky Way”: Conheci Tomas Cunha Ferreira em Portugal, durante algumas turnês que fiz com o Kassin +2 (Moreno e Domenico) nos anos 2000. Nos encontramos muitas vezes nessas turnês e começamos a compor uma série linda de canções, algumas delas ainda inéditas. Mas para o Cabeça a Mil, queria algo novo, focado no disco. Ele me mandou “Milky Way”, uma letra viajante, espacial, curta e com poucos versos. Isso me sugeriu algo simples, minimalista, com muitas repetições. Uma levada forte, talvez a mais pop, com um refrão que se repete várias vezes em coro: “Milky Way…”. Fiz um beat usando samples de baterias eletrônicas antigas, como a Maestro. Gravamos a bateria de Vitor Cabral complementando esse beat em um esquema “Sly and the Family Stone” no disco Fresh. Pensei em uma linha de baixo distribuída em dois canais com timbres diferentes: grave e agudo. Convidei Duda Lima para tocar o canal de baixo grave e toquei o agudo com um efeito envelope filter. Guilherme Monteiro tocou a guitarra, que caminha junto com o riff do refrão. Convidei Leticia Pedroza para arranjar e cantar os coros; a voz dela é perfeita para o que essa música precisava. Achei que a faixa necessitava de complementos nas camadas dos sintetizadores. Para isso, convidei Rodrigo Tavares, que além de super músico, é especializado em pesquisa de timbres de teclados e um excelente criador de linhas melódicas que sempre funcionam como “ganchos”.
4. “Cerne”: Mais uma letra muito forte de Quito Ribeiro. Para essa, quis um ritmo funkeado, sincopado e quebrado. Bateria e baixo seguem essa levada, com a guitarra rítmica de Guilherme Monteiro super presente, preenchendo os espaços. Eu toquei, além do Baixo, um piano Wurlitzer e um órgão. Vitor tocou uma bateria subdividida no HiHat. Escrevi um arranjo de metais para os Copacabana Horns (Jorge Continentino, Marlon Sette e Diogo Gomes) darem mais potência nos refrões. No meio, fiz um solo fuzz de baixo, dobrado pelo trombone do Marlon. Assovios na introdução e no interlúdio dobram com um sintetizador em uníssono – um recurso muito usado por Tom Jobim e João Donato na música “Whistle Stop”, que tem tudo a ver com “Cerne”.
5. “Manjar de Luz”: Conheci Ana Frango Elétrico através do nosso amigo em comum, Guilherme Lirio. A Ana é apaixonada por música, produção fonográfica e artes em geral; uma artista que sempre busca quebrar as barreiras do óbvio e está em constante revolução. Um dia, mandei uma ideia de composição que eu tinha, ela gostou e desenvolvemos juntos “Boys of Stranger Things”, nossa primeira parceria que entrou no último álbum dela. No momento de compor para o meu álbum, ela com certeza tinha que estar entre os meus parceiros. Em plena pandemia, ela me mandou a letra de “Manjar de Luz”. Minha primeira ideia foi uma harmonia com acordes menores que descem de tom em tom paralelamente, com uma nota dentro dos acordes que desce cromaticamente – isso cria a sensação da música. Encaixei uma melodia na letra, sílaba a sílaba cantada e harmonizada em coro, sempre nos contratempos. Até chegar na frase mais importante, que descrevia uma sensação com a qual me identifiquei muito: “Cabeça a mil e o corpo lento” – o verso que deu título ao álbum. Ana participou com uma voz que surpreende no meio da música, cantando esse verso, o mais importante. Criei um interlúdio com um sintetizador, seguido por um lindo solo jazzístico de sax tenor do meu irmão Jorge Continentino.
6. “Go Get Your Fix”: Gabriela Riley é uma parceira com quem tenho uma fluência incrível na composição. Ela é meio brasileira e meio americana. Nós dois somos amantes da música negra, é nosso principal ponto de afinidade. A letra que ela me mandou, “Go Get Your Fix”, me inspirou a compor algo muito rítmico, uma melodia irregular, sinuosa, jazzística, bebop, cantada em harmonia com intervalos de quartas. A base (baixo, guitarra e teclados) toca sobre um ritmo harmônico quebrado na primeira parte da música. No meio, há uma transição: todos saem, fica apenas a conga de Orlando Costa. A partir daí, a música tem uma virada e entra a linda voz da Gabriela cantando “My fix is love”. Logo depois, entra um solo melódico de duas guitarras fuzz em harmonia, tocadas por Guilherme Monteiro. Talvez seja a música mais futurista do disco, com uma produção que tenta olhar para frente, com referências modernas e atuais.

7. “Verdade Bem Contada”: Kassin é um grande amigo, um sábio que tem a importância de um irmão mais velho para mim. Ele me diz coisas que abrem meus olhos e ouvidos, me influenciando positivamente. Ele está presente em todos os meus discos autorais, e também colaborei em algumas composições dos discos dele. Não podia faltar uma parceria com ele em “Cabeça a Mil”, e ele me mandou “Verdade Bem Contada”, que me inspirou a compor uma melodia bela, meio antiga e empolgante, pra frente. Foi uma ótima oportunidade para ter a participação de Nina Miranda, cantora que já admirava muito e com quem criei uma conexão a partir de um grande encontro para fazer um lindo show na Polônia, onde Kassin também estava. Trabalhamos com músicos e artistas maravilhosos em Varsóvia e trouxe muito desse encontro para essa faixa. Só consegui encontrar a levada certa para “Verdade Bem Contada” no estúdio Marini, do próprio Kassin, com Caio Oica na bateria, Danilo Andrade nos teclados e Kassin na guitarra. Gravei algumas melodias de sintetizador fazendo um tema na introdução. Os Copacabana Horns (Marlon, Diogo e Jorge) tocaram um arranjo meu em um momento especial, com destaque para os metais – um solo de naipe. No final, quis ter a participação de outra cantora incrível que conheci nesse mesmo encontro na Polônia: Joanna Halszka Sokolowska. Ela faz um vocalize no final com um timbre especial que pode ser confundido com um sintetizador. A presença de Kassin neste disco também se estende à mixagem, uma mixagem ousada e artística que deu muita personalidade ao álbum. “Verdade Bem Contada”, assim como “Milky Way”, “False Idol” e “Go Get Your Fix”, ainda conta com a imensa colaboração e a assinatura do super produtor e mixador Mário Caldato na mixagem, junto com Kassin.
8. “False Idol”: Conheço Silvia Machete há quase vinte anos; participei de alguns álbuns dela e compus uma canção que foi gravada por ela em um de seus primeiros discos. Mas a partir de 2018, nos aproximamos mais. Começamos juntos uma pesquisa de referências de estética sonora para um novo disco dela. Ouvimos muita música juntos, e ela começou a escrever e me mandar letras. Eu nunca tinha feito melodias a partir de letras, mas comecei a trabalhar nisso e o resultado foi surpreendente.Esse processo se tornou muito fluente, escrevemos um repertório para dois álbuns dela, todas as músicas em inglês. Esse método de composição do disco Rhonda (2020), da Silvia, foi uma das coisas que despertaram em mim o desejo de gravar o “Cabeça a Mil”, e a Silvia está no álbum com a nossa bossa-fossa “False Idol”: uma bossa nova com sonoridade não tradicional de baixo elétrico, Fender Rhodes e guitarra, super lentona e viajante. Uma letra amargurada, uma interpretação super profunda que a Silvia colocou no disco. Jorge Continentino toca um arranjo que escrevi para flauta, que conversa com o canto da Silvia em contraponto por toda a música.
9. “A Palavra Rio”: Um dos letristas com quem eu tinha muita vontade de compor era o super artista Rodrigo Cabelo. Nunca havíamos feito juntos nenhuma música. Ele me mandou a letra de “A Palavra Rio”. Quando me deparei com essa letra, “viajei” nas imagens de um monte de letras amontoadas formando a palavra “montanha” e se transformando na palavra “Rio”. Fechei os olhos e conseguia visualizar claramente essas imagens. Talvez essa seja a mais jazzística de todas. Por isso, escrevi um especial meio bebop para os metais e toda uma sessão instrumental no final. Nessa música, o piano Rhodes de Rodrigo Tavares se destaca na costura harmônica de belos voicings na primeira parte e um solo exuberante no final que conversa com o bebop do trompete de Diogo Gomes.
10. “Negrume”: Jonas Sá é um super parceiro com quem já compus várias canções. Uma vez, ele fez uma letra para uma música minha com a Nina Becker sem saber que essa música era para um projeto nosso de músicas para crianças. A letra não se encaixou muito nesse espírito e Marcelo Callado acabou escrevendo outra. Um dia, peguei a letra do Jonas que tinha “sobrado” nessa história, para dar uma olhada, e a achei maravilhosa. Ela me inspirou a compor a melodia para “Negrume”, que entrou no álbum “Cabeça a Mil”. Do disco, essa é a música que tem mais espontaneidade de um grupo tocando ao vivo no estúdio, com pouquíssimas sobreposições. Guilherme Lirio, Thomas Harres e eu no baixo fizemos um take super solto e cool. Depois, gravei Fender Rhodes e um solo de sintetizador no meio.

11. “Vieux Souvenir”: Nina Becker é uma super parceira, uma super cantora que tem uma personalidade e um olhar estético muito especial. Eu, ela e Eduardo Manso temos uma banda juntos, o Firabanaba. Uma banda colorida, pop, punk e eletrônica, focada no divertimento total de um público que une crianças com seus pais e quem mais estiver por perto (foi para a gente que o Jonas escreveu a letra de “Negrume”). Fizemos juntos várias composições para essa banda. E a Nina, sem dúvidas, tinha que estar na minha lista de letristas parceiros de “Cabeça a Mil”, além de eu também querer muito ter a voz dela participando em uma faixa. Depois de três canções em inglês no disco, eu quis ter a linda sonoridade do francês. Sabendo que a Nina fala e canta muito bem em francês, compus para ela uma melodia inspirada na música pop francesa dos anos 70 e mandei para ela letrar. Ela começou a ideia da letra e convidou a artista Laura Erber para finalizar essa ideia. O título da canção é “Vieux Souvenir”. Thomas Harres criou uma levada meio hip hop para ela. Guilherme Lirio tocou uma guitarra estalada, dando os acentos nos backbeats, bem típico de Motown e outros gêneros dos anos 70. Eu toquei um baixo abafado, usando palheta, inspirado nos discos de Serge Gainsbourg. A Nina cantou divinamente, com um timbre agudo, puro e suave, super bem gravado pelo engenheiro Angelo Wolf em um microfone fabricado por ele mesmo. Eu toquei, além do baixo, órgão e uns detalhes de sintetizadores.
12. “Madrugada Silente”: Negro Leo é um dos artistas que mais me impressiona atualmente, que mais me desperta interesse a cada disco que ele lança. Nunca havia composto com ele. Mais um que aproveitei a ocasião do disco para encomendar uma letra. Ele me mandou “Madrugada Silente”, na qual descreve a madrugada silente da minha vida, das minhas noites e das nossas reflexões existenciais. “O carinho é a única forma de triunfar sobre a sentença cruel da existência.” Pensei numa levada soul bem suave, um violão um pouco folk. Poucos elementos, sobrando espaço para umas frases de Wurlitzer “jogadas” por mim mesmo. No final, a frase que fecha o disco: “Estamos certos por um fio”.