Dadi Carvalho e Armandinho mostram uma sintonia musical rara. Isso já podia ser comprovado lá nos anos 1970, quando tocaram na banda (inicialmente) instrumental A Cor do Som, junto a Mú Carvalho nos teclados e Gustavo Schroeter na bateria. A banda nasceu para acompanhar Moraes Moreira, mas cresceu e foi além: logo, estava voando pelas ondas das rádios com seus próprios hits, como “Beleza Pura”.
Mas se engana quem pensa que essa conexão se limita aos palcos: durante o bate-papo com a Noize, esses mestres da música mostravam um encantamento e respeito recíprocos — lembravam de um causo, deixavam o outro complementar, sorriam a cada memória resgatada.
Após o A Cor do Som, cada um foi construindo sua própria história. Dadi integrou o Barão Vermelho nos anos 1980, acompanhou nomes consagrados no auge — como os Tribalistas —, tocou com diversos artistas e hoje se prepara para uma turnê com Marisa Monte e Orquestra. Já Armandinho, sagrado como rei da guitarra baiana que inspirou o axé, segue o legado do pai, Osmar, do lendário duo Dodô e Osmar, inventores do trio elétrico. Teceu parcerias com Chico Buarque, Otto, entre outros.
“A música me salvou”, diz Armandinho, o rei da guitarra baiana
O reencontro desses dois talentos é sempre um evento à parte. No dia 7 de agosto, subiram juntos ao palco do Blue Note, em São Paulo, para mostrar a química entre baixo e guitarra e compartilhar histórias de mais de 50 anos de amizade.
Dividindo palcos
Até as vésperas da apresentação, quando rolou nossa entrevista, Dadi e Armandinho ainda não tinham ensaiado — não que precisasse, levando em conta a sinergia natural entre os dois. “É uma sintonia musical mesmo. Somos irmãos, praticamente”, reforça Dadi. Apesar disso, a proposta de um show só dos dois pegou ambos de surpresa. “Eu não pensava nisso”, disse Dadi. “Eu também não!”, garante Armandinho, rindo. “Nem sabia que o Armandinho toparia. Mas decidimos fazer, e foi ótimo escolher o repertório do show”, conta Dadi. O set foi baseado em A Cor do Som e dos projetos de cada um, para além de versões de músicas que mexem com os dois — caso de “Something”, dos Beatles, que Armandinho toca magistralmente com seu bandolim.
Pergunto aos dois como se conheceram, e o papo começa a desembolar naturalmente. Confira um trecho:
Dadi: Lembro direitinho quando conheci o Armando. Eu tocava nos Novos Baianos e estávamos no Carnaval de Salvador. Estávamos andando e, de repente, veio um trio elétrico. O som que saída da guitarra do trio me pegou demais. Falei: “Caramba, parece o Jimi Hendrix!” [risos]. Eu fiquei deslumbrado, falei: “Quem é esse cara?”. E aí começamos a andar com o Armando, essa pessoa maravilhosa, um doce de pessoa.
O Moraes já estava quase saindo da banda… Você chegou a ir lá no sítio, né, Armando? [Referindo-se ao lendário sítio onde os Novos Baianos vivam e tocavam, em Jacarepaguá, que acabou virando uma grande comunidade hippie].
Armando: Fui… Mas você sabe que, quando fui, você não estava lá, né? Você tinha saído para tocar com o Moraes.
Dadi: Ah, é verdade.
Armandinho: Eu queria muito conhecer esse sítio. Aí fomos jogar bola. Sabe, eu até fui convidado para entrar nos Novos Baianos pelo Paulinho Boca. Mas, na época, respondi: “Ah, não, cara… eu já estou no trio elétrico, já estou com horário comprometido” [risos]. Para mim, já era uma felicidade tocar com o Moraes. Eu estava começando. E daí, esse carioca que eu adoro [diz, apontando para Dadi] saiu dos Novos Baianos. Começamos a tocar eu, ele e Moraes. Nasceu assim A Cor do Som.
Noize: E tem algum momento mais marcante que vocês lembram dessa época com o Moraes?
Armandinho: Ah, muitos. O Moraes já acordava com uma música na cabeça. Era uma coisa impressionante. Foi muito inspirador para mim, porque eu não tinha essa coisa da composição… meu negócio era sair tocando. Um dia, eu estava brincando com o bandolim, o Moraes estava fazendo um café. Daí, ele ouviu o som e perguntou: O que é que você está fazendo aí? Eu disse: Nada não, é só uma brincadeira minha… Ele disse: Espera, toque aí. Eu comecei [imitando o barulho do bandolim] e ele já foi botando a letra. Nasceu assim nossa primeira música, “Davilicença”. Chama assim porque o Davi [Moraes, filho de Moraes Moreira] tinha um aninho. Ele passava pela sala, pelas pessoas, e o Moraes estava ensinando ele a pedir licença [risos].
O Moraes fazia música fácil assim, com letras maravilhosas. Nunca tive essa facilidade. E olha que faço música todo dia, fico gravando… com a diferença que agora é pelo celular.
Dadi: Pois é, você falou de gravar… lembro que o sítio era meio caído [risos], apesar de bem grande… e o Moraes ficava ali, no cantinho, magrinho, tocando violão. Ele pegava um riff e ficava tocando por dias. Porque não tinha gravador, era uma forma de decorar a música.
Noize: E então, veio A Cor do Som. Foi uma das principais bandas instrumentais de música brasileira a cair no gosto do público…
Dadi: Sim. Um dia, o André Midani sugeriu que a gente começasse a cantar para tocar no rádio, exatamente porque ele não estava conseguindo pagar as despesas do disco. A gente gravava e vendia 2 mil cópias, o que não era bom. Realmente, o Midani tinha razão: nossas músicas cantadas tocaram muito: “Beleza Pura”, “Swing Menina”….
Armandinho: Esse esquema foi bom, porque, no disco, foram três músicas cantadas para sete instrumentais. Foi a melhor maneira de levar a música instrumental para um grande público. Cantando, a gente ganhou uma plateia. A gente saiu de 12 mil discos….
Dadi: 12 não, 2 mil [risos].
Armandinho: 2 mil?
Dadi: Sim. A gente vendia pouquinho sendo instrumental.
Armandinho: Então 2 mil.
Dadi: Não, pera. Pode ser. Vamos falar que foram 12 mil [risos].
Noize: E esse show de vocês dois, será que inspira a criação de novas canções em parceria?
Armandinho: Boa ideia, hein, amiga. Podemos aproveitar a chance.
Noize: Podemos ter esperança de novas apresentações?
Armandinho: Depende muito do público, né. Estamos numa expectativa danada, porque nunca fizemos um show dessa forma.
Dadi: Pois é. Até eu vou tocar guitarra.
Armandinho: Vai ter baixo, guitarra baiana e bandolim. Estamos animados!
Leia também: Como Moraes Moreira foi decisivo para a expansão do carnaval atual