Jorge Aragão é um dos grandes poetas do samba. Seja no Fundo de Quintal ou na carreira solo, Aragão é conhecido por suas composições memoráveis, voz marcante e habilidade singular com o violão e o cavaquinho, sendo decisivo na consolidação do samba na cultura popular.
No ano passado, o cantor e compositor Arthur Albaz foi convidado pela família de Aragão para regravar músicas icônicas do sambista em francês. O resultado foi Samba d’Amour: Arthur chante Aragão (2025), em parceria com Manuella Lacerda. O álbum, gravado em apenas um dia, também é o primeiro trabalho de estúdio de Arthur, e foi gravado em clima intimista no apartamento onde ele vive, em Paris.
O francês já tinha viralizado nas redes sociais por suas interpretações de clássicos brasileiros na língua materna. Foi assim que ele chamou atenção de Fernanda Aragão, neta do sambista e detentora do selo Aragão Music, que fez o convite para o projeto. Samba d’Amour: Arthur chante Aragão (2025) conta com dez faixas e produção do próprio Arthur.

Arthur é francês, mas poderia ser brasileiro. Mudou-se para o Rio de Janeiro e se apaixonou pela nossa música, com referências que vão de Alcione a Marcelo D2. Em Samba d’Amour: Arthur chante Aragão (2025) “malandro” virou “malandrin” e “já é” virou “j’irai” — mas a mensagem é a mesma.
Na impossibilidade de traduzir literalmente a experiência brasileira para a língua francesa, as letras foram adaptadas por Arthur e a companheira Manuella Lacerda, carioca que ajudou a dar o tom do disco. Neste faixa a faixa, eles contam que muitas delas foram inspiradas por amores que o casal viu nascer de perto.
Além da releitura, Manuella também canta nas faixas “Toi et Moi, Toujours” e “Sucré d’Amour”. Além de Manuella, a cantora e compositora Luísa Meirelles participa em “Lucidité” e “J’irai”.
“Escrevemos esse álbum em apenas um mês, com o cuidado de manter vivo, em uma língua diferente e com novas palavras, o sentimento das obras originais do Jorge Aragão e dos demais compositores. Cada faixa conta, em sequência, a jornada íntima de histórias de amor, como se fosse um romance dividido em capítulos”, explicam os músicos.
Veja (e ouça) o faixa a faixa a seguir:
“État d’amour (Feitio de Paixão)”: o feitiço que abre o álbum. Não é por acaso, ela é a primeira. A letra fala exatamente sobre a busca pelo amor. A sede de tornar uma paixão real, de apostar todas as fichas para ver nascer uma nova história. “Vivre en état d’amour, mon envie la plus précieuse” canta que viver em estado de amor é o desejo mais precioso. E as canções seguintes se abrem, justamente, para as diferentes formas em que o amor pode se apresentar.
“J’irai (Já é)”: o amor já existe, e eu irei aonde ele me levar Foi a primeira a ser escrita. Arthur a compôs antes mesmo da família Aragão abraçar o projeto. Foi com essa versão do Jorge Aragão em francês que tudo se tornou real. Encaixamos as sonoridades do clássico original, e “Já é”, que não tem tradução direta para o francês, virou “J’irai” (“irei”). É o instante em que tudo se confirma: se o amor existe, eu irei.
“Samba d’amour (De Jorge Aragão para Arlindo Cruz)”: a receita para fazer um samba de amor. Essa composição do Jorge Aragão e Arlindo Cruz não podia ficar de fora. É ela que, inclusive, dá nome ao álbum. O verso “Si mes frères et sœurs connaissent pas le samba, voici Jorge Aragão” convida os franceses a conhecerem, para além do ritmo, as muitas emoções e histórias que o samba carrega.
“Je vais fêter (Vou Festejar)”: a celebração do fim de uma separação A canção original tem um gostinho bem brasileiro, de um final de relação doído. Quase uma satisfação, tão humana de ver sofrer quem nos machucou. Trazer isso pro francês foi um desafio, por ser uma emoção não tão falada por aqui. Respeitar o sentimento da música e a sonoridade tão forte foi intenso, mas bonito. “T’as liquidé toute ma passion, ne vient plus demander pardon” — qualquer francês compreende e, até, se reconhece quando se canta que uma paixão liquidada não merece perdão.
“Toi et moi, toujours (Eu e Você Sempre)”: o amor na sua certeza mais profunda. Foi a adaptação mais rápida a ser escrita, como se ela já existisse, como a própria evidência que a letra canta. A Manu, que ama essa música desde criança, compôs a versão francesa em menos de meia hora, na cama do nosso apartamento em Paris. O refrão virou: ”Tu sais, un jour on sera de nouveau collés, serrés, dans tes draps enlacés. Le destin prouvera, faut pas se séparer” – a clareza de quem sabe que um amor, mesmo quando se machuca, nunca se separa.
“Malandrin (Malandro)”: o amor de um francês pela Malandragem “Malandrin” é uma palavra antiga e quase esquecida em francês. Trazer ela para uma canção atual foi uma forma do Arthur homenagear a primeira composição de Jorge Aragão. E o conceito de malandro foi um pouco o que ele viveu, em 2019, quando chegou no Brasil sem falar português e foi acolhido por pessoas que conheceu durante sua viagem de ônibus pelo país. Da Central do Brasil até Paciência (Zona Oeste), começou a entender, como estrangeiro, a alma da malandragem. E descobriu, nela, algo seu.
“Sucré d’amour (Doce Amizade)”: uma amizade que vira um flerte doce. Nasceu com um sabor especial. A versão francesa é inspirada num casal de amigos que, enquanto o álbum tomava forma, se apaixonou. Convivemos o outono inteiro juntos, observando e vibrando com o flerte deles. Essa brincadeira gostosa, a leveza do afeto que cresce silenciosamente. Um amor que chega devagar, quase sem avisar, como aquele instante entre o encanto e o mergulho. E, no dia da gravação das 10 faixas, essa doce amizade deles se transformou em “saint, si secret et sucré d’amour”.
“Ode à la samba Do Fundo do Nosso Quintal – a admiração pelo Cacique de Ramos”: uma homenagem ao Cacique de Ramos e ao Grupo Fundo de Quintal. Há tantas referências culturais que uma simples tradução não daria conta. Por exemplo, “quintal” em francês vira “jardim”, mas o quintal do Cacique tem alma, tem calor. A frase “Obrigado do fundo do nosso Quintal” se transformou em “Rendez-vous au Brésil vivre le carnaval” como um convite aos francófonos a mergulhar no samba que celebramos ao longo desse álbum. É uma canção-manifesto ao movimento do pagode, que saúda a emoção coletiva em estado puro, onde a alma vibra, o corpo dança e o samba encontra seu lar.
“Lucidité (Lucidez)”: o amor que só precisava de um sinal. Mais uma adaptação que se inspirou em uma história real, desses nossos amigos que se apaixonaram. Na volta de uma viagem que fizemos juntos pelo Mediterrâneo, quando eles se aproximaram, escrevemos a primeira parte, que fala do amor ainda contido, que existe primeiro na ideia, mas já pulsa com força no coração. Era um sentimento que só precisava de tempo, paciência e lucidez para florescer, como canta Aragão na original. A segunda parte foi escrita depois, quando a paixão deles se tornou real.
“Histoire d’une fin (Tendência)”: quando o amor acaba, mas a história continua. Uma das versões mais transformadas em francês. A melodia e a emoção permanecem, mas a letra ganhou um novo rumo: homenagem à Dona Ivone Lara e às mulheres que moldaram o samba. A música encerra o álbum com o verso repetindo “Les sambas chanteront ton histoire” (“Os sambas cantarão a sua história”), exaltando uma mulher que, ao se libertar de uma relação limitadora, encontra força na natureza e nas vozes femininas ao seu redor. A inspiração veio da leitura que marcou o Arthur: Canto de Rainhas – o poder das mulheres que escreveram a história do samba, do jornalista Leonardo Bruno.