Boas novas, álbum de estreia de Zeca Veloso, foi lançado no dia 26 de novembro. Com canções autorais, participações de Xande de Pilares, Dora Morelembaum, além do pai e do irmão, o disco conta ainda com produção a muitas mãos, passando por Monnerat, Júlio Raposo, Pepê Santos e Uiliam Pimenta. A “boa nova” marca o momento de maturidade artística do artista, com arranjos sofisticados para dar conta de uma atmosfera poética íntima, espessa e delicada.
O músico apareceu para o público em 2017, quando realizou com os dois irmãos, Moreno Veloso e Tom Veloso, e o pai, Caetano Veloso, a turnê Ofertório. No repertório do show estava “Boas vindas”, o samba de roda de recepção recôncava e alegre da família ao filho do meio, e “Todo homem”, a apresentação inaugural do jovem como compositor e cantor. Ofertório é a parte da missa em que se dispõe o pão e o vinho para a consagração como símbolo de gratidão e de união a Jesus. Como quase 50 milhões de brasileiros, Zeca é evangélico: lê a Bíblia, frequenta cultos, ora. Ele mesmo definiu o disco como um presente de Deus – ou seja, quase como um ofertório às avessas.
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Porém, mais do que qualquer intenção proselitista ou gênero gospel, é como uma tonalidade afetiva que a fé comparece em seu trabalho. A tradição longeva e profícua de nossa melhor música popular inspirada e interessada na religiosidade – Maria Bethânia, Milton Nascimento, Gilberto Gil, para citar alguns exemplos – afirma-se e se atualiza na delicadeza temática das letras e na entonação tantas vezes angelical do falsete, mas também na intimidade profundamente densa e docemente atormentada de sua alma musical. Efeito subjetivo, portanto, mais do que formalismo pastoral. Em outros termos, uma posição artística.
O teaser de divulgação do álbum decupa imagens que tomam posição, para usar uma expressão de Didi-Huberman. A mãe, o pai, os irmãos, a tia, Santo Amaro, a cidade da Bahia, o mar, a radicalidade da raiz exposta e devorável, de onde se parte amorosamente para se tornar outro. Tudo está lá suavemente encadeado, acolhido, assumido.
Um ofertório faixa a faixa
“Salvador” abre o disco com uma homenagem afetiva à capital baiana. O paradoxal paganismo da narrativa mostra um “guerreiro forte e destemido” que consagra o sol, as águas, a terra e o tambor ao “céu do Salvador”. O artigo definido não resguarda qualquer trivialidade ou desatenção: é ele quem sublinha que salvador, afinal, é quem salva. O guerreiro espiritual poroso e ciente das possibilidades de derrota permanece probo em meio às adversidades: salvo em Salvador, salvo no salvador.
Foi Gilles Deleuze, singularíssimo leitor de Nietzsche, quem salientou que só o que retorna é a diferença. Como em um eterno retorno do ofertório, Zeca aparece nesta canção mais uma vez acompanhado do pai e dos irmãos. O tom melódico e harmônico da melhor música de carnaval da Bahia no refrão evoca o Olodum e a Timbalada, além de todas derivações das religiões de matriz africana, mas também “Onde o Rio é Mais Baiano” (do Livro, de 1997) – uma das tantas paragens de Caetano pelo espectro da chamada axé music. Onde a Bahia é mais carioca, Zeca lembra que nossa alegria festiva não é oposta à fé, mas, sim, complementar – e que essa relação pode ser um índice de que ainda não fomos vencidos: um índice de nossa salvação.
A cartografia pop-funk-afetiva de “Máquina do Rio” aparece simultaneamente contraposta e lateralizada a “Salvador”. A cidade onde Zeca nasceu aparece ritmicamente mais acelerada, melodicamente mais urbana, vingativa e ameaçadora. Nem por isso, mais mortífera ou menos dançante – mas a dança é outra. Entre a distância e a presença, entre o arrependimento e o perdão, funda-se o compromisso com o “sopro que acende a máquina do Rio” – não sem uma certa pertença deslocada do eu lírico.

Foi Santo Agostinho, em seu platonismo medieval, que definiu o cristão como “um estrangeiro na Cidade dos Homens”, pois sua verdadeira pátria é a Cidade de Deus – desconforto inescapável que é uma espécie de modo de vida. O ponto de vista poético nas duas cidades, Salvador e Rio, é limiar – algo próximo daquilo que um pensador como Walter Benjamin, em oposição à dureza das fronteiras, indicou como um espaço de transição. É o estabelecimento quase necessariamente aquoso da margem, ali onde só se pode ficar um tanto dentro e um tanto fora – da tradição e da novidade, da origem e do desvio, do familiar e do individual, do terreno e do celestial.
“Desenho de animação” remete também a esta posição, com uma conversa transgeracional acerca das possibilidades de uma posição original do Brasil no mundo – questão candente entre nós ao menos desde a Antropofagia na década de 1920 e tornada popular com a Tropicália. A possibilidade postiça e mimética de nossa vida cultural se apresenta na aclaração das marcas estadunidenses dissolvidas imanentemente em nosso cotidiano – ao menos, quem sabe, desde Machado de Assis.
A menção aos filmes italianos e franceses, contrapostos à supremacia americana atual, é enfatizada pelo desencaixe formal do título da canção, entre o desenho animado de outrora e a animação dos belos filmes da Pixar.
Trata-se, portanto, de desejo. O termo, que só tardiamente, na virada para o século XX, encontrará seu sentido psicanalítico, é uma invenção cristã que substituiu a psiquê grega, forjou a interioridade subjetiva e exigiu práticas como a confissão, o exame de consciência e a vigilância permanente. Etimologicamente, desiderio significa “sentir a falta das estrelas” ou “esperar pelas estrelas”. Essa posição interior faltante e esperançosa, afinal, talvez seja a condição de possibilidade para o ímpeto vocal mavioso de Zeca: sentir o céu como quem espera algo que virá – e que, enquanto não chega, falta.
“Boas Novas”, “Talvez Menor”, “Carolina” e “A carta” insinuam essa zona limiar entre um eu lírico vulnerável e delicadamente otimista. A melancolia e a expectativa de renovação enevoam a harmonia, em uma temporalidade que, mais do que pulsada e cronológica, parece ser densa: tempo de aión, tempo qualitativo da eternidade, impassível aos começos e aos fins, aos calendários e aos relógios – tempo da incerteza da alma, tempo daquilo que dura por si. O canto almado é um canto de dentro – um canto profético, um canto de esperança diante da falta, um canto de desejo da estrela que quiçá virá.

“Sal do Nosso Chão” e “O Sopro do Fole”, por fim, simbolizam essa relação limiar que perpassa, como tom, as canções anteriores. Entre o solo e o som, entre as raízes e o movimento, entre o que fixa e o que move, entre o litoral e o sertão, correm e estancam materiais afetivos e poéticos de nossa vida cultural mais íntima. Se fixar e mover são dimensões do mesmo mundo – Parmênides e Heráclito, claro – é entre compassos e descompassos que a vida sopra, se alimenta, aterra e se renova.
“Fazer amor com a velha escola”, enfim, é um movimento de dupla pertença – tradição e invenção, presente, passado e futuro, ancestralidade com os olhos no porvir. Em ambas as canções, comparece o intento de retornar a um lugar profeticamente nunca nomeado – mas ainda e sempre é daqui que se parte, ainda e sempre é aqui que algo falta, ainda e sempre é no interior poeticamente atormentado que tudo perde e ganha sentido. Ninguém sofre fora de si, e diante da fragilidade ontológica da condição humana, Zeca observa, padece, espera, luta e canta – e nós damos boas vindas às ótimas novas que se anunciam.