O trabalho de Cícero é sensível e autoral — mas isso não é novidade. Desde o lançamento de Canções de Apartamento (2011), seu álbum de estreia, ao indie rock da banda Alice, o carioca cava seu espaço na música nacional. Agora, após cinco anos de hiato, ele retorna com uma nova tour [confira datas abaixo].
De 2011 até 2020, Cícero lançou cinco álbuns, com intervalos de dois anos de uma produção para outra. Mas, com a pandemia, tudo mudou: no casulo de sua própria casa, entre perdas de pessoas queridas e recomeços, Cícero se resguardou.
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Agora, cinco anos depois, ele lança Uma Onda em Pedaços (2025), novo álbum de inéditas do músico. Também na virada dos 35 aos 40 anos, o álbum é super Cícero (mas também não é por inteiro). Se a MPB está em constante evolução, ele também está.
Cícero é um dos responsáveis pelo fortalecimento do indie nacional ao lado da geração de músicos que despontou nos anos 2010, como Letrux, Céu, Silva e Camelo, que pavimentaram o caminho para bandas como Bala Desejo.
Ouvir Uma Onda em Pedaços (2025) é ter um gostinho do que se passa na cabeça de Cícero. O álbum é, com orgulho de ser, introspectivo e existencialista. Para o shooting, Cícero posa em uma mansão destruída, em uma metáfora que expõe os próprios frangalhos da vida.
Entre as participações, Cícero conta com os amigos de longa data como Duda Beat,Vovô Bebê, e Tori, com produção própria. O álbum explora o passado, o futuro e a graça de estar vivo, no presente.
Na estrada
A tour começa em outubro, em Curitiba (3/10), Porto Alegre (4/10), São Paulo (11/10), João Pessoa (18/10), Belo Horizonte (24/10), Goiânia (30/10) e Brasília (31/10).
As apresentações continuam em novembro e dezembro em nove cidades no Brasil e três em Portugal, finalizando os shows no dia 5/12, em Lisboa. Seu processo criativo, recheado de afetividades, é destrinchado em papo com a Noize, Cícero conversa sobre fases da vida, a cena alternativa nacional e a humanização das máquinas. Leia na íntegra:
Cinco anos separam Cosmos (2020) e Uma Onda Em Pedaços (2025). O que mudou no Cícero da pandemia para o Cícero de hoje?
Muita coisa. Tem o tempo das coisas que aconteceram no mundo, a pandemia e outras loucuras. Tem também o meu tempo, de sair dos 35 e chegar nos 40. É um movimento mental. Teve também as mudanças tecnológicas todas que aconteceram nesse tempo veloz. Foi muita mudança concentrada em cinco anos, parece que foi uma vida inteira.
Como foi o processo criativo de Uma Onda Em Pedaços (2025)?
Foi fragmentado. A ideia do título veio muito disso também, são muitas que eu fui fazendo, durante esses cinco anos, e até antes disso, e foram representando pedaços da minha vida. Comecei a gravar disco com 17 anos, e até a pandemia, gravava um novo material de dois em dois anos. Foram muitos discos e com espaço de vida entre um e outro muito curta.
Fui desenvolvendo linguagens, mas eu fiz três discos no tempo que eu fiz um só. Tinha muita vida concentrada em pedaços muito distantes uns dos outros. O que me apaixonou pelo projeto do Uma Onda Em Pedaços (2025) foi, justamente, que ele representa um momento único. Como um quebra-cabeça todo embaralhado em cima da mesa: uma vida fragmentada, é como estava minha obra, cinco anos de música sobre momentos diferentes, difíceis, fáceis.
Nesses cinco anos, tive dois grandes amores, morei junto, você começa a montar a casa e teve a casa que você desmonta quando termina, isso acontece mais de uma vez. A pandemia foi muito dolorosa, perdi pessoas muito importantes na minha família, pessoas que me criaram, como a minha tia. Muita coisa mudou de uma forma avassaladora.
Mas também muitas coisas maravilhosas aconteceram, teve o arco da beleza e da dor. Pessoas importantes adoecendo, também pessoas importantes nascendo, é como se fosse realmente o mar, são ondas que vão, ininterruptamente, quebrando e você tenta se situar.
Esse é o conceito do disco, esse movimento de ondas, que vão, ao mesmo tempo, acontecendo na nossa vida.
Componho o tempo todo, sempre fragmentado e nunca concluindo as músicas. Nunca pego uma música e faço começo, meio e fim, fico abrindo portas eternamente. Quando vou gravar o disco, geralmente faço um apanhado das músicas que acredito que vão entrar no disco e começo a organizar por premissas.
Essa vai ser a primeira, essa a última, ou é uma música de passagem, que entra no meio do disco. As premissas vão estimulando minha criatividade. Por exemplo, a música com a Duda [“Beat, Sem Dormir’], partiu de: “vou fazer uma música para a Duda cantar, a partir de uma memória que eu e ela temos em comum”.
Como se deu a escolha desses feats? Como você se identifica com o trabalho deles?
Meus critérios são sempre afetivos. A Duda, a gente se conhece há mais de dez anos, uns 14 anos. Ela não tinha disco, e nem eu, na época. Somos muito amigos, já fomos tudo, e nos adoramos. Quando ela lançou seu primeiro disco — Sinto Muito (2018) — eu estava morando em Portugal, ouvi e adorei! Fiquei com vontade de fazer música para ela.
O Vovô [Bebê] também é um grande amigo, que já tocamos juntos, desde o Albatroz, nós nos conhecemos há mais de dez anos também. Todo mundo foi mais ou menos assim. A Tori, conheci cantando, achei o disco dela lindo, se ela cantar “Cai, cai, balão”, vai ficar lindo. [risos]. A escolha foi, basicamente por pessoas que eu tenho afinidade musical e afetiva, tinham que ser esses dois critérios. E não só as participações que cantaram.
Quando a gente fala de feat, tende a só mencionar as participações que cantaram, mas as que tocaram, que gravaram piano, como Marcelo Galter, que, pra mim, é o melhor pianista que existe, foi uma honra ter ele no meu disco. Enfim, são participações que agregaram suas personalidades ao disco, além da voz.
Você já tem turnê marcada, como estão as expectativas para colocar o pé na estrada?
O outro pedaço de um álbum é sempre a turnê. Vamos começar em outubro, em Curitiba, e vamos rodar o Brasil todo. É uma parte da obra que se conclui só na turnê, sabe? Quanto mais a internet vira a vida real das pessoas, mais a realidade parece virar algo extraordinário.
É muita música, todo dia, aquelas músicas em eterna cachoeira no streaming, as vezes a pessoa nem se conecta muito, porque não teve a experiência humana que aquela música poderia proporcionar. E, quando ela vai em um show, e se vê em grupo, aquela música entra em outro lugar.
Faço muita questão de tocar os álbuns, em todos os lugares que eu puder, independente da quantidade de público, porque essa experiência é muito importante. É memória do corpo, você sente as frequências e o grave na pele, é uma outra memória, diferente.
O nome do álbum também é a faixa de encerramento do disco. Como a música define a produção?
A música fala: “O passado segue adiante”. O disco passa e, na última música, já está virando passado. O disco é mais um pedaço da onda que é a vida de quem está ouvindo, da minha vida, fez sentido ser a faixa de encerramento.
Como foi encontrar a sonoridade das músicas? Quais foram suas referências e quanto tempo você ficou na produção do disco?
A produção durou quatro meses, entre começar e estar pronto. Não tive muitas referências nesse álbum, fui no intuitivo do que já sou e, principalmente, assimilando as personalidades das pessoas que chamei. Por exemplo, os baixos do disco são, quase todos, do Vovô Bebê, e o baixo do disco é a cintura do disco, o requebro do disco tem muito dele.
São três bateristas diferentes, cada um leva a música para um lugar de sensação rítmica. Se você dança mais assim ou assado, tem a ver com o baterista e o baixista. Também os arranjos de corda do Pacheco, que são sempre deslumbrantes.
A personalidade das pessoas que eu chamei está muito forte no disco
A personalidade das pessoas que eu chamei está muito forte no disco, e a minha também, porque são pessoas que gostam de mim e eu gosto delas. Elas não estavam ali para debater com a minha mensagem, mas para deixá-las mais belas. São pessoas que fizeram o que fizeram por amor, e não só para “entregar o trabalho”.
Gosto dessa relação afetiva com o processo criativo.
Nas outras coisas da vida, você pode ser burocrático, ir no banco ou no Detran resolver papelada, nesses lugares você fica mais objetivo e menos afetivo, mas, na hora de criar, pra mim, não tem como não ser através de relações afetivas, até se você vai conhecer a pessoa no dia de gravar.
O pianista do álbum, Marcelo Galter, eu conheci no dia da gravação. O Vovô Bebê indicou a ele, a rede de afetos protege de se perder. Na hora de ser criativo, se você perdeu, já era, porque aí você grava um disco frio e impessoal, esses trabalhos não ficam.
São milhares de discos sendo lançados todos os dias, o que faz uma pessoa ouvir o seu? E se simpatizar com aquilo, e ouvir mais uma vez, e de novo. O streaming, quando quer empurrar goela abaixo, consegue dar um milhão de plays em um dia. Mas passou um ano, ninguém mais está ouvindo aquilo, ninguém mais está se conectando.
O número pode ser muito encantador no primeiro momento. “Tive um bilhão de plays na minha música e ganhei uma fortuna” — se o seu jogo for esse, beleza, mas ninguém está se conectando com aquilo. Esse não é o meu jogo.
A meu ver, essa obra vai ganhando significado no tempo, a obra precisa disso. O Canções de Apartamento (2011) tem a força que tem porque quem ouviu lembra que ia ouvindo na faculdade, ou porque tinha um namorado, terminou esse namoro, ou estava morando em tal lugar.
Parte da beleza do disco é o tempo, que foi passando e dando espaço para a pessoa dar significado e memória para aquilo.
Uma Onda Em Pedaços (2025) já nasce com essa sabedoria. Já sei que esse disco precisa de alguns anos, para que cada música pegue alguém em uma fase da vida e ganhe força.
Não tenho mais nenhum interesse em fazer música que arrebente a boca do balão. Que seja um hit, que todo mundo ouça e seja a nova febre do Brasil, porque isso não é bom para ninguém. Não é bom para o disco, nem para o público, que enche o saco da música de tanto que toca, e nem para o artista, que vira escravo desse sucesso, não consegue se livrar.
A beleza da obra está no tempo e espaço que ela vai ocupando, naturalmente, sem fazer alarde. Ninguém enche o saco de ninguém para achar Van Gogh bom ou um poema do Fernando Pessoa. Tenho a humildade de saber que Uma Onda Em Pedaços (2025) vai ocupar o espaço que merece no coração das pessoas que tem afinidade por aquilo.
É um lugar mais pacificado de produção, que eu gostei de ter chegado nela e não pretendo sair. Acho que tem a ver com a idade e por tudo que eu passei nesses últimos cinco anos, que me deixou mais calmo.
Uma Onda Em Pedaços (2025) vai ocupar o espaço que merece no coração das pessoas que têm afinidade por aquilo.
Tendo isso em mente, como você acha que vai ser a recepção do público?
Não tenho expectativas. Sei que a vida da gente tem muita coisa e que a música ajuda a passar por essas coisas, sejam boas ou ruins, pessoas nascendo ou morrendo, relacionamentos terminando ou começando.
Sempre tem uma música que faz você passar pela vida com mais beleza
Minha inspiração é sempre de que as pessoas, que tem afinidade com o que eu faço, que elas passem pela vida usando as minhas músicas, sacou? É uma noção de serviço mesmo. Talvez um momento de alegria ou de dor, alguma música que eu fiz faça sentido.
É uma grande honra participar desse momento da vida de uma pessoa. O que mais posso querer? Como eu “casei ouvindo sua música”, “meu filho nasceu ouvindo sua música”, “meu pai morreu ouvindo essa música”, “lembro da faculdade”, enfim. Todos os momentos que são vida a música melhora.
“Mente Voa” é um rap, um gênero que, considerando sua carreira, não seria o primeiro a ser associado a você, e é um dos que você mais consome. Como surgiu o interesse? Como você pretende explorar ele na sua obra?
Escuto rap desde a adolescência, sempre achei que foi algo que me ajudava a articular meus versos. Venho de uma escola de rock alternativo, os sons dos riffs, grooves, guitarradas e violadas sempre me interessou muito. Gastei muita energia nisso [no som] e quis reduzir o número de palavras ao máximo, só ao indispensável, para liberar espaço para eu poder fazer linhas de baixo, sopros e guitarras.
A paisagem sonora sempre foi mais interessante do que a voz. O rap entrou para organizar ideias, não só pela voz, mas pela quantidade de informações que você consegue colocar em um espaço curto. A premissa de “Mente Voa” é deixar a mente voar, deixar a mente ir embora, escrever tudo que vem à cabeça. Entro em premissas mentais na hora de compor.
Quando deixei a mente voar, comecei a escrever muito. Quando vou polir, vou reduzindo, tentando chegar ao centro do que eu vou dizer. Como já fiz muito isso, mas achei legal sobrepor as coisas. A letra super filtrada e um pedação de letra que eu ia falar rápido, que já tinha cadência musical, ficou com esse flow de rap, mas também de repente, que é algo super brasileiro, é o rap como recurso estético.
Todos os estilos musicais me interessam
Não tem um que eu fale: “ah, não gosto”. Todos os estilos musicais eu consigo falar, de pronto, uma música absurdamente linda. [risos]. Não vejo porque não inserir o rap, partiu daí.
Vamos falar sobre “Meu Amigo Harvey”, com sample de Brahms. Como foi o processo de composição dessa música?
A premissa dessa música era samplear Brahms e fazer um arranjo, do meu jeito, e com a cabeça muito mexida pelo filme Meu Amigo Harvey. É um filme dos anos 50, sobre um homem que tem um amigo invisível, que é um coelho de dois metros de altura. É um filme muito bom e uma reflexão incrível.
Quando fiz a música, estava com isso borbulhando na cabeça, e juntei as duas coisas. Nos meus discos, tenho uma linha de raciocínio de também trazer músicas experimentais, em Uma Onda em Pedaços (2025) “Meu Amigo Harvey” e “Tranquilo” cumprem esse papel.
Recentemente, você lançou Concerto 1 (2025), que reúne sucessos dos seus álbuns anteriores Canções de apartamento (2011), Sábado (2013), A praia (2015), Cícero e Albatroz (2017) e Cosmo (2020). Por que revisitar essas produções?
O álbum saiu em janeiro desde ano, e a turnê foi retratada em 2023. Em 2020 e 21 teve a pandemia, nada aconteceu, em 2022, fiz a turnê do Cosmo (2020). Quando acabou, eu ainda estava em frangalhos da pandemia, não tinha acontecido nada que me desse vontade de fazer um álbum de inéditas, e nasceu a vontade de fazer o Concerto 1 (2025).
Na pandemia, eu pensava: “Se a gente ficar trancado em casa para sempre, vou projetar os músicos na parede da minha casa e vou tocar na frente, esse vai ser o futuro”. Quando as coisas normalizaram, pensei em projetar os músicos em um telão. Não é show, nem teatro e nem cinema, são as três coisas juntas.
Estou sentado na frente do telão, “atuando” e seguindo um roteiro, e também é cinema porque tem um telão atrás acontecendo muita coisa que não aconteceria em um palco convencional, como músicos derretendo ou ficarem azuis [risos]. O público adorou esse show.
Quando estava com as gravações, com as orquestras, e vi que estava lindo o material. Pensei: “com o fim da turnê, ninguém vai ouvir isso?”. Assim nasceu a ideia de lançar como um álbum. Não é bem um álbum ao vivo, e nem de estúdio — ele é um híbrido, uma terceira coisa.
A orquestra gravou ao vivo, mas eu gravei no estúdio, percebi que ali tinha um valor artístico, que merecia ser lançado, na mesma época que minha cabeça também já estava fermentando com o Uma Onda Em Pedaços (2025).
Há muito tempo você é solo, mas também já esteve em uma banda, a Alice, que acabou em 2008. De lá pra cá, mudou minha coisa?
Na época da Alice, eu era muito novo. Hoje em dia, é algo diferente, mudou minha visão de música. Gostava de ter banda. Quando você é adolescente, é a sua galera, é com quem você sai e com quem conhece o mundo e a vida.
Foi muito importante, sou muito grato por ter tido uma banda, no sentido antigo da palavra: a banda que você ensaiava toda semana, divulgava shows colando cartaz na rua e tocava em bar. Acho que esse conceito vai voltar, a experiência humana está voltando a ganhar importância. Hoje em dia, o processo de produzir um disco, com banda ou solo, não tem muita diferença, pra mim.
É sempre agregador/ Sempre chamo muitas pessoas e busco o melhor som, com opiniões se atravessando. A questão é quais são os indivíduos no processo criativo, tá confluindo? o barco está indo para frente ou tem alguém-âncora? A dinâmica humana dando como resultado uma expressão artística. Também não acho que coletivamente o resultado é melhor do que o solo.
Dependendo da mensagem, se é algo muito concentrado em uma pessoa, que quer falar uma parada super específica, ela vai entregar melhor sozinha, do que se você colocar um monte de músico e produtores limpando e polindo. Mas, também, vale para o outro lado, às vezes um produtor limpando e polindo que faz a música encontrar sua beleza, cada álbum é um álbum, cada processo é um processo.
Você é uma pessoa que se muda muito – e aqui eu falo geograficamente: nasceu no Rio de Janeiro, mas se mudou para São Paulo, Estados Unidos e Portugal. Por que a mudança de ares é necessária? Elas influenciam na sua produção?
Influenciam, são centrais. Não são necessárias, mas são o que são. É um movimento que começou desde pequeno, meus pais se divorciaram, e eu ia de casa em casa, e fui replicando esse modelo. Inclusive, estou encaixotando essa casa que estou agora [risos].
Minha vida me levou a isso e os discos retrataram esse processo. Vejo muito nos meus álbuns o deslocamento geográfico, começa no apartamento — Canções de apartamento (2011) — que chega no Sábado (2013), passeia na A praia (2015), sobrevoando a cidade de Albatroz — Cícero e Albatroz (2017) — até atingir o Cosmo (2020).
Não passei 15 anos planejando essa narrativa, fui vivendo e a narrativa foi se construindo. A arte é muito ligada à vida, acabou que ela me explicou isso, assim como explicou para o público, você consegue ver as mudanças ao longo dos álbuns.
Você pertence a uma cena independente que ganhou projeção nacional nos anos 2000, com Letrux, Céu e outros. Seus primeiros álbuns, inclusive, foram disponibilizados de forma 100% independente. Como você acompanhou de perto, o que sentiu que mudou na cena independente nesse período?
Acho que não tem mais essa bandeira de ser independente. É uma rede integrada de cabeças, nenhuma pessoa que está fazendo música hoje está pensando se é independente ou não, porque, hoje em dia, é uma zona cinzenta, sabe?
Às vezes, você faz parte de um selo super indie, mas que pertence a uma gravadora gigante. É como estar em três redes sociais diferentes, mas que são do mesmo dono, você acha que está em lugares diferentes, mas é o mesmo lugar. Acho que, ser independente ou não, não é mais uma grande questão.
Somos uma alternativa que se estabelece ao que existe
Gostei muito do que a Letrux fez nessa turnê, que chamou de 20 Anos Alternativa, porque, realmente, é isso [alternativos] que nós somos. Somos uma alternativa que se estabelece ao que existe. O primeiro disco que eu gravei foi em 2004, divulgavamos colando cartaz em poste.
De lá pra cá, já gravei uma porrada de disco, e divulguei em Fotolog, My Space, Orkut, Facebook, Instagram e agora estou gravando vídeo para o TikTok. O veículo chave antes era rádio, depois virou o streaming, é isso, as coisas vão mudando, a música já foi na partitura.
Cada tempo tem suas facilidades e suas dificuldades. Gosto de estar fazendo 40, porque peguei muito da vida analógica e muito da vida digital. Consigo pular de uma para outra, sem ficar doente. Consigo falar: “dane-se a tecnologia, vou para o mato tocar meu violão” e isso não vai me deixar muito triste não, se tiver um amigo e um amor.
E também consigo ficar na internet todas as horas do dia. Quem vai deixar de pensar, viver e sentir para deixar a máquina fazer isso? Não quero que a máquina escreva minha poesia e escreva minha música para eu falar louça e roupa, eu quero que ela lave a roupa e a louça para eu fazer poesia [risos].
Confira Uma Onda Em Pedaços faixa a faixa:
“Pássaro Nave”: é minha atualização sobre tudo. A canção onde digo de onde vim, por onde passei, para onde estou indo. É uma espécie de carta aberta aos que me acompanham e aos que não me conhecem, onde exponho o que sou hoje e o que sempre fui.
“Mente Voa”: como o nome diz, é sobre deixar a mente voar e encontrar nesse exercício um lugar de acolhimento e alívio. Nesse exercício, escrevi versos longos que acabaram ganhando uma cadência de rap, o estilo musical que mais tenho ouvido nos últimos anos. Foi natural que ele estivesse presente nesse álbum.
“Sem Dormir (feat. Duda Beat)”: fiz essa música pensando na Duda, para a Duda. Nos conhecemos há mais de uma década, tivemos muitos momentos legais, e essa música fala de um desses momentos, quando fomos acampar na Praia do Sono, em Paraty. Da mesma memória ela compôs “Pro Mundo Ouvir” e eu quis escrever uma música sobre essa lembrança boa também.
“Ela Disse”: uma música sobre aprender a amar. Aprender novas formas de amar e novas formas de sentir amor. Parti da frase da Frida Kahlo, “Onde não puderes amar, não te demores”, para entender a permanência e a impermanência em uma relação que tem amor e que precisa se adequar às suas características para encontrar saúde. Amar para curar.
“Dia Vai (feat. Tori)”: uma canção que trata de um momento de viagem na memória, onde nos deixamos levar por uma lembrança e chegamos a um sentimento. Parti de uma memória específica para criar uma canção que mostrasse o que a memória é capaz de nos fazer sentir.
“Lucille”: essa música nasceu em inglês. Comecei antes da pandemia e presenciei términos de relacionamentos de amigos e meus desde então. Acabou sendo uma música que foi sendo lapidada ao longo de anos e pela qual tenho enorme carinho. Minha primeira composição em inglês.
“Ausência”: uma música sobre estar só e se sentir só mesmo quando em companhia de outra pessoa. Fala sobre como o sentimento de ausência deve ser acolhido e não combatido.
“Meu amigo Harvey”: sempre quis samplear Brahms, de quem sou muito fã. Quando assisti ao filme Meu amigo Harvey, da década de 50, achei tão atual e tão carismático o protagonista, que fiquei com vontade de escrever essa canção. A ideia do flautista de Hamelin também é antiga. É uma música que fala da nossa alienação atual, dessa esquizofrenia tecnológica, da desconexão com o próximo e das projeções de onde isso pode dar e de onde já deu.
“Tranquilo (feat. Vovô Bebê)”: uma canção sobre não deixar que nossa cabeça fale demais com a gente. Tive muita influência do disco Bad English (2025) do Vovô Bebê e do Aladins Bakunins (2015) do Frito Sampler nessa música. É sobre ficar tranquilo e não se deixar enganar por nós mesmos.
“Uma onda em pedaços”: encerrando o disco, fala sobre a passagem do tempo e sobre como se relacionar com isso sem sofrimento — embora não sem dor.