Em um país onde o esquecimento histórico é constante, a cantora e pesquisadora Luciana Oliveira criou um documento que preserva as vivências de artistas negras e suas contribuições para a música brasileira. Assim nasceu o Catálogo de Cantoras Negras Brasileiras, livro que começou como uma tese de mestrado em fonoaudiologia e evoluiu para uma obra literária, desenvolvida pela Dandara Editora.
Luciana desenvolveu um projeto que abrange a história de cantoras das cinco regiões do Brasil, de gerações diferentes e que performam estilos musicais distintos. Ela também busca dar visibilidade para artistas que estão ativas no século XXI e demolir estereótipos criados em torno da música negra.
Entre as entrevistadas, estão artistas pioneiras como Leci Brandão, Dolores Duran e Dona Ivone Lara, ao lado de vozes contemporâneas, como Karol Conká, Luedji Luna e Liniker.
A sua obra começou como uma pesquisa de mestrado. Qual foi a sua motivação para transformá-la em livro?
Eu acredito que essa vontade nasceu um pouco antes. Eu já gostava de pesquisar, ler sobre a obra de cantoras. Acho que na minha própria trajetória artística, nos meus shows, sempre tinha um ar de pesquisa.
Eu sempre vi uma grande importância da gente conhecer não só a música, mas a história, a trajetória, os detalhes de vida, a caminhada, contexto cultural, sociocultural. Com o mestrado, tinha essa ideia da pesquisa abordar a estética do canto e da performance. Mas, eu comecei também a listar cantoras.
Nessa listagem, eu percebi que existe ainda uma certa dificuldade de encontrar esses registros de cantoras de tempos atrás – e inclusive as de hoje. Mesmo as vozes da cena contemporânea, a gente acaba sabendo mais sobre um trabalho específico. A artista conta alguma coisa num podcast, mas não temos tantos registros como documento. A ideia foi ir lá no passado, trazer um pouquinho dessas cantoras antigas e contar as histórias dessas artistas do presente, porque isso já vai estar resguardado para o futuro.
De que maneira você acha que o Catálogo contribui para a valorização da memória afro-brasileira?
Essas histórias ficam resguardadas nas memórias, mas a escrita ainda tem esse lugar importante, de documento. Poder entrevistar as cantoras, ouvir a história delas, contar no livro e guardar isso para posteridade, eu acho que é um dos propósitos da obra. Registrar ali, com a ideia de que outros venham também.
Hoje, a gente vive também o excesso que não necessariamente é aquilo que vai ficar guardado, você encontra muita informação. Mas essa informação está organizada? Está cuidada? Tem realmente ali uma orientação, um conceito por trás, acho que é muito importante ter isso.
Quais foram os critérios utilizados para selecionar as cantoras da obra? E como foi o processo de entrevista?
Essa foi uma grande questão. Sempre tem muitos nomes, no Brasil. Muitas mulheres, muitas cantoras, todas com trajetórias e obras valiosas. Então foi bem difícil entender como é que a gente vai conseguir fazer um recorte.
Quando fiz a lista, falei: “Deixa eu ver quantas cantoras eu lembro”. Comecei mesmo a brincar com a minha própria memória. Coloquei, olhei e falei: “Poxa, agora eu já não consigo mais lembrar”. Comecei a ficar mais atenta. Sempre que eu via um disco, via alguém falando de uma cantora X, ia na listinha e colocava. Falei: “Não, deve ter tem muito mais que isso que eu lembro, tem muito mais”.
O meu desejo, desde o início, era trazer realmente todas as regiões. A gente não conseguiu abranger todos os estados. Mas pelo menos tinha que ter ali as cinco regiões do Brasil representadas. Quando estávamos no Sudeste, começou aquela tendência de olhar muito para lá. Rio, São Paulo, vários nomes vindo. Falei: “nossa, vamos dar uma pausa agora aqui e vamos abrir, porque senão a gente vai voltar de novo para aquele mesmo lugar de supervalorizar o Sudeste”.
Quando a gente ia para determinadas regiões, que são menos acessadas nesse sentido, falei: “agora vou tentar procurar cantoras negras do Ceará”. De cabeça, eu não lembrava. Foi um lugar, por exemplo, que eu tive que começar uma pesquisa mesmo quase que do zero. Teresina, inclusive, acabou ficando de fora porque comecei a pesquisar, pedi umas indicações e não vieram tão facilmente. A gente foi equilibrando também os gêneros musicais. Se vamos falar de São Paulo, vamos tentar trazer uma cultura que é do samba, uma cultura que é do pop…
Também trouxe cantoras que já tinham uma trajetória um pouco mais sólida. Não no sentido de serem conhecidas nacionalmente, mas de ter dois, três álbuns. Aí começa a ter uma narrativa.
Pensei, inclusive, na diversidade de idade também. Porque tem cantoras que se lançaram a partir dos anos 2000. Mas, por exemplo, a gente tem vozes que tem 60 anos ou mais, mas que só gravaram seu primeiro disco depois dos anos 2000. Então elas também entram como cantoras do século XXI.
O livro abrange um grande leque de artistas, de diferentes gerações, de Leci Brandão à Liniker. Você sentiu muita diferença entre as vivências de cada faixa etária?
É muito interessante perceber a caminhada das artistas mais antigas e ver que existe uma diferença com as mais contemporâneas, porque elas estão aí hoje também. Elas são de hoje também. Leci está aí, superativa. A Alcione está aí, superativa. Mas elas vêm de outras vivências.
Gravadoras, naquela época, tinham outro peso. Existia muito esse lugar também de “a nova fulana”. Então, a Alcione, por exemplo, eles queriam uma mulher negra que seria a nova voz do samba. Os discos anteriores da Alcione, não eram exatamente de samba. Ela acabou entrando para o samba porque ela se identificava, mas também era uma demanda um pouco ali do mercado. Então, acho que tinha uma coisa do mercado que já era um pouco diferente.
Para elas também essa questão da autoafirmação enquanto mulheres e cantoras negras, naquela época era uma coisa bem diferente. Mas, ao mesmo tempo, são desbravadoras. A Leci Brandão chegou com o canto político, colocando nas letras umas provocações. A gente precisa reverenciar porque elas abriram caminhos, imagino que, para essas, as coisas foram bem piores.
Por outro lado, a questão da religiosidade ainda é muito presente. Nas culturas mais contemporâneas, falar desse lugar de afirmação da mulher negra, do feminino, do corpo feminino e tudo isso também é um ponto bem marcante. Do racismo, do amor, também acho que a gente se abriu e se permitiu mais falar sobre isso.
Quais desafios enfrentados por essas cantoras são destacados no livro, principalmente sobre a indústria musical brasileira?
A sensação que tive ouvindo as histórias dessas cantoras e passando até pela minha própria história, é que ainda é muito difícil se manter no mercado, é muito difícil ainda você desenvolver uma carreira prolongada.
Parece que o mercado está absorvendo um grande número, mas, na realidade, é um número parecido. É sempre como se elegesse sempre aquelas cantoras como as “do momento”. Elas estão ali ocupando aquele espaço, mas tem um monte que tá fora com muita dificuldade de entrar na cena.
Além disso, a nossa criação fica um pouco cerceada. E aí vem a questão do racismo, e tem hora que você quer falar só da folha, da planta, da pipa, da pedra. A grande questão é, se você falar disso, só da poesia, você vai ter voz? As pessoas também vão te ouvir? Eu sou uma cantora negra e quero cantar sobre essas sutilezas do dia. Você não falar sobre isso, não quer dizer que não acontece. Você só não quer se manifestar sobre isso na sua música. A gente também precisa olhar para esse lugar dessa liberdade. Nós precisamos ter essa liberdade.
Noto que você se preocupou em incluir todas as regiões do Brasil no livro, e quase todos os estados. Além disso, também buscou colocar cantoras de diversos estilos musicais. Qual é a importância dessa diversidade?
Um dos pontos é entender que, por exemplo, durante muitos anos as cantoras negras viveram um lugar de como se tivesse um nicho específico para essa atuação. Então, normalmente, quando eu falo que eu canto, as pessoas sempre perguntam se eu canto de samba. E quando eu entrevistei no mestrado, também as cantoras, muitas falavam isso. Essa ideia de que a artista negra canta samba, tem vozeirão, tem essa projeção.
Tem aquela cantora que vai de voz suave, tem a artista que é mais da canção, tem a cantora que traz realmente ali um repertório, que dialoga muito com essa questão das tradições afro-brasileiras. Tem as cantoras que são do pop, tem funk. E tudo isso é linguagem, é expressão, é uma forma delas contarem a história delas, dentro de um contexto musical. Nós não somos um padrão, cada uma tem realmente uma história e traz as suas referências.
Sobre as regiões, três lugares foram muito marcantes para mim: Minas Gerais, Maranhão e Pernambuco. Porque são lugares onde tem uma cultura muito viva, uma cultura popular. Então, você mora no bairro e do lado dele tem um Boi, tem um Maracatu, tem um Tambor de Crioula. Normalmente as artistas acabam dialogando muito com essa cultura e se formando muito por essa via de tradições.
Uma cantora de repente que é de São Paulo, a formação se dá muito ali em centros culturais, nessas trocas, dessas instituições e já começa talvez por um aprendizado um pouco mais formal, que é realmente estudar numa instituição. Então percebi essas caminhadas são muito diferentes e aí isso depois se reflete na música. Nos temas que elas trazem, como elas trazem cada caso.
Isso se reflete até mesmo como elas se classificam. “Ah, eu faço uma música afro-mineira. Ah, eu faço uma música preta brasileira”. Então, tem essas denominações que a gente só vai conseguir ver isso se a gente realmente falar do Brasil. Entender esses diversos cantos com todo contexto que eles trazem.
Como o Catálogo contribui para a valorização das vozes femininas negras na música brasileira?
A gente vai também desenvolvendo uma rede. Quem sabe no futuro, a gente realmente consiga formar um ambiente maior de trocas, de parcerias, de compartilhamento. Isso era uma das perguntas que eu tinha lá na entrevista: “Como você dialoga com a cena e quem são os seus parceiros da música, pessoas que você troca e conversa?”
E muitos falaram: “Ah, eu sinto muita falta de ter essa troca, lugar de troca”. Pessoas que a gente pode partilhar das dificuldades e também da própria música, da criação.
Além disso, as pessoas que leem o livro começam a conhecer nomes que não tinham nem ouvido falar. Se interessam. Então, a obra faz com que essas as vozes sejam realmente um pouco mais conhecidas em outros contextos.