“Dom divino” e “surreal”: os bastidores de “Estratosférica”, de Gal Costa

13/10/2025

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Por: Dora Guerra

Fotos: Divulgação/Carol Siqueira

13/10/2025

Era setembro de 2013, e o jornalista Marcus Preto pensava em um documentário sobre o Fa-Tal, aquele icônico show de Gal Costa de 1971. Mas para isso, ele precisava falar com a própria Gal. E até marcava, mas ela sempre cancelava. “Num desses dias, até cheguei a marcar um cinema com os amigos”, contou o jornalista à Noize. “Aí falei: ‘Gente, cancela que a Gal veio’”.

Quando se encontraram, Marcus não quis alugar muito a grande artista à sua frente. Falou do projeto, ela curtiu a ideia, e ele já foi se retirando. Foi Gal quem quis que ele ficasse. “Paulista é assim, né? Só quer saber de trabalho, falou de trabalho, já queimou fora”, brincou. Pois então, Marcus ficou.

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Os dois conversaram sobre vida, carreira, e o jornalista aproveitou para perguntar o que Gal planejava gravar em seguida. Ela vinha de Recanto (2011), álbum “experimental” de inéditas feito com Caetano Veloso que marcava a entrada oficial da artista no novo milênio. E como revelou ao jornalista, o próximo plano era lançar um disco de versões do jazzista Chet Baker.

“Como se não houvesse amanhã, falei assim: ‘Não, você não pode fazer isso!’ Aí ela me olhou com uma cara um pouco assustada”. Para ele, Recanto (2011) finalmente tinha tirado a artista das regravações, colocando-a de volta no posto de farol da música brasileira. Ela não podia perder esse gás. Gal revidou. “O que acha que eu deveria fazer, então?”. “Regravação não, chega de regravar”, respondeu o jornalista.

Então, Marcus tirou uma ideia da cartola e sugeriu um projeto de inéditas, que incluísse composições de artistas novinhos e reafirmasse o poder de Gal ao chegar aos 50 anos de carreira. A resposta dela foi uma das coisas mais inacreditáveis que Marcus ouviu na vida. “Gostei. Quer fazer o disco comigo?”.

Escolhendo o repertório

Nomeado oficialmente o diretor artístico do projeto, Marcus ficou por conta de reunir o repertório nos meses seguintes. A ideia dele, vocalizada às pressas naquele dia em setembro, era promover encontros —— artistas de diferentes gerações compondo músicas especialmente para a cantora. Milton Nascimento, Criolo, Caetano Veloso, Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Céu.

Nem toda música foi fácil de conseguir. Marcus revela que “Dez Anjos”, com letra de Criolo musicada por Milton, teve que ser “roubada” do rapper, que esboçava reticente alguns rascunhos e não os enviava. Quando chegou ao Bituca, ele adorou. Outros artistas (Marcus não cita quais) não tiveram a sorte de passar pelo crivo exigente de Gal.

Alguns sobreviveram à primeira, mas não segunda ouvida. Era uma caixinha de surpresas. “Eu gravava em CD, levava na casa dela, a cada duas semanas, pra gente ouvir as músicas. Às vezes ela se empolgava com uma música e eu considerava jogo ganho. Aí, na semana seguinte, ela não estava mais tão empolgada”.

Dom divino

Em 2014, entraram no estúdio Gal, Marcus, os instrumentistas e o produtor Alexandre Kassin. O último, que até fez parte de Recanto (2011), nunca tinha efetivamente entrado em estúdio com a Gal. Então, o produtor só foi conhecer a Gracinha, gente e cantora, no processo de Estratosférica (2015).

“A gente convivia todo dia, almoçava, jantava junto, trocava ideia. Virou uma comunidade, uma família. Eu só tenho lembranças boas”. Ao se recordar das sessões em estúdio, Kassin usa palavras como “inacreditável”, “surreal” e “dom divino”.

“Lembro da gente testando o tom das músicas com ela. Aí o tom ia subindo, subindo, subindo, ela ia, passava por todos os tons tranquila. Você ficava pedindo qual era o tom melhor e nenhum deles tinha problema. Era muito fácil”.

Para cada música, Gal gravava várias interpretações, inteiramente diferentes. Cada vez que se se aproximava do microfone, mudava a intenção. Aos poucos, o repertório composto por outros artistas ia se transformando em Gal Costa. “Quando ela começava a cantar, a música passava de boa para sublime. Ela tinha esse poder”.

Sem medo nem esperança

O disco se chamaria Sem Medo Nem Esperança, um aceno à faixa composta por Antonio Cícero. Em texto enviado à artista, o poeta explicava que a expressão é adotada, desde a antiguidade, “por aqueles que sabem viver o presente em toda a sua plenitude”.

“Eis o que, entre outras coisas esplêndidas, sempre encontramos e amamos na voz, no canto, nos shows e nos álbuns de Gal Costa: a experiência de, junto com ela, sem medo nem esperança, sentir a coragem, o tesão e o prazer de nos abismarmos no instante, nas canções e nas infinitas nuvens do presente”.

Marcus lembra que a associação era linda, poética, típica do saudoso escritor. Mas sem a explicação que o acompanha, o nome dava uma sensação, incorreta, de que a cantora estava desesperançosa com o futuro. Para um disco que trata justamente do hoje e do amanhã, não era uma interpretação fiel.

Foi uma composição da Céu com Pupillo que chacoalhou as coisas. Uma das últimas a entrar no disco, a canção originalmente se chamava “Alfazema Ajaió”, mas quando pronta, chegou sob o título “Estratosférica”. Nasceu um nome.

“Falei: ‘Gal, tenho uma ideia. E se o disco chamar Estratosférica?’. Ela gritava: ‘Nossa, nossa, nossa!’”. E assim, Estratosférica se tornou título — na capa do disco, é adjetivo, até um novo sobrenome para Gal. Assim como Fatal. Para a capa, Gal convidou o fotógrafo Bob Wolfenson e até “botou cabelo”, aumentando o volume de sua famosa juba.

A sugestão de Marcus era de acrescentar desenhos nas mechas (pássaros, raios…) como se o cabelo “tivesse toda a força da natureza”. Ela adorou. Mas nem tudo saiu do jeitinho que eles conversaram. Depois de algumas decisões internas, a capa oficial acabou sendo só a foto, sem desenhos. Portanto, esta edição do NRC+, com capa ilustrada, resgata a ideia – e a mágica – original. Outra novidade desta edição lançada pelo NRC+ são as faixas inéditas em vinil: “Átimo de Som” (Zé Miguel Wisnik/Arnaldo Antunes), “Muita Sorte” (Lincoln Olivetti/ Rogê) e “Vou Buscar Você pra Mim” (Guilherme Arantes).

Uma década ‘Estratosférica’

Marcus conta que Estratosférica (2015) é o disco preferido de Gabriel, o filho da Gal. É o álbum de “Quando Você Olha Pra Ela”, composição de Mallu e um dos maiores sucessos da cantora no novo milênio. E consolidou uma trilogia moderníssima na trajetória dela, que seguiu estratosférica com o potente A Pele do Futuro (2018).

Gal morreu em 2021, um golpe cortante em qualquer fã, admirador e artista da música popular brasileira. Para alguém como Marcus, que inaugurou em Estratosférica (2015) uma amizade de anos com a cantora, era até difícil voltar aos discos.

“Depois que a Gal morreu, eu não consigo ficar ouvindo as coisas dela, me dá um sentimento estranho”, conta. “Mas reorganizar esse disco agora deu uma alegria. E aí, parece que não tem a morte dela na história mais. De um tempo para cá, eu já consegui, já deu a volta. Eu já ouço vendo só a beleza das coisas”.

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13/10/2025

Dora Guerra