Don L: “Não quis batida gringa no meu disco”

17/07/2025

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Por: Revista NOIZE

Fotos: Divulgação/Bel Gandolfo

17/07/2025

Por Davi Maia e Luiz Antônio Soares

Hoje, Don L é um dos maiores nomes do rap nacional. Isso não está ligado aos números que ele tem nas plataformas digitais – que já impressionam — mas à influência que o artista tem para diferentes gerações, seja no Costa a Costa, quando tudo começou, ao final dos anos 2000, ou no mais recente álbum, o já aclamado CARO Vapor II – qual a forma de pagamento? (2025).

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Seja na leitura do mundo ou na atuação artística, Don L chama atenção por ocupar um lugar fora do comum na estética sonora e conteúdo. Equilibra-se entre subjetividade e performance, entre o artista imperfeito e as contradições da imagem de rapper em um cenário cada vez mais performático e menos crítico. Mais que atual, ele mergulha nas mazelas do presente para permanecer, de fato, contemporâneo.

Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver a obscuridade de seu tempo, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo (Giorgio Agamben em “O Que é Contemporâneo?”)

Em meio a uma bateria de entrevistas para contemplar o lançamento, Don L conversou com a Noize sobre questões ligadas à sua visão de mundo – e música.

Eu vejo na sua obra muita coesão – desde o Costa a Costa até o Caro Vapor I. Traço um paralelo muito claro, por exemplo, entre “Blogueira” (música do Froid com participação do Don L) e “BOSSa”, desse álbum novo. Eu queria saber como você encara essa questão da figura do rapper, que tem eras diferentes, com suas próprias metamorfoses.

Pô, acho que o primeiro erro de qualquer artista é não conseguir lidar com as contradições, né, cara? Porque aí é meio que um caminho para o abismo. Você não pode se pretender acabado nunca. Você está sempre aprendendo. Uma coisa muito importante que eu sempre fiz foi me colocar como inacabado mesmo. Isso é muito importante porque eu vi vários caras do rap sofrerem muito por causa disso.

Quando eu era moleque, via os caras mais antigos vindo com aquele discurso que era muito duro do rap, né? De um proceder que era quase uma “grande moral”, que você tinha que ser um cara certo em vários sentidos… Às vezes a vida não rima desse jeito. Você rima a vida, mas a vida, às vezes, não rima. Então ficava meio difícil para os caras segurar a pressão, segurar a onda, né?

E eu sempre me coloquei como um cara imperfeito, inacabado, em descobrimento, em autodescobrimento. Continuo achando muito importante para que eu tenha liberdade artística, tá ligado? Mas ao mesmo tempo garantir a minha sinceridade, a minha honestidade ali. Quando eu tô produzindo uma obra, eu tô entregando o que tem na minha visão de mundo ali, tá ligado?

Muito da minha subjetividade, das coisas que me atravessam e que são do nosso tempo e como eu enxergo isso, como eu lido com isso e tal. Então acho que é uma lição número um pra todo artista entender, saca? Não se pretenda inacabado que você vai quebrar a cara.

Para não se perder no personagem, de uma certa forma, né?

Exatamente! Pra não se perder no personagem. Que é muito difícil, né? Hoje em dia é uma luta, porque isso prejudica sua ascensão. Porque tudo o que a indústria quer, e as redes sociais querem é uma caricatura, né? E isso me prejudica um pouco, porque qual é a caricatura do Don L?

É sempre um empobrecimento. E às vezes é mais vendável, mas para o artista como pessoa, eu acho que é tóxico. Então, você pode até ganhar mais dinheiro, mas eu vejo um sofrimento maior depois… não sei se vale a pena. Mesmo com muita grana, eu não sei se vale a pena.

Don, é interessante ouvir você falar sobre isso. Você é um cara que vivenciou toda essa transformação no Hip-hop, que passa de música marginalizada para o gênero mais escutado do mundo, né? E aí, você cita, no Caro Vapor II, nomes como Oruam, L7, Orochi, que são as estrelas do trap. É o movimento mainstream do hip hop hoje. Ao mesmo tempo que essas figuras tendem ao afastamento do discurso político na lírica, elas são hoje, talvez, os maiores alvos dessa repressão. Como você enxerga a necessidade de uma politização mais ampla nesses contextos diferentes da cena?

Mano, são meus irmãos. O L7, com Orochi. O Oruam eu não conheço, não tive oportunidade de conhecer. Mas, realmente, os caras são alvo de um bagulho que vai além, alvo de uma visão racista da elite brasileira sobre uma música que vem da periferia e que tem a ver com muita coisa, né, cara?

Você vê o que aconteceu no Santo Amaro agora, por exemplo. Aquilo ali poderia ter sido uma chacina. Não foi por sorte. Morreu uma pessoa e foi horrível. Mas, por exemplo, causou muito mais comoção do que em Paraisópolis, onde morreram, sei lá, acho que mais de 15 pessoas pisoteadas numa invasão de um baile funk, né? Mas por quê que causou mais comoção? Isso é muito uma coisa que é interessante de se perguntar. Porque não era uma festa de funk. Isso foi a surpresa.

Então a periferia não pode mais curtir nenhuma festa junina? Aparentemente, não. Parece que até isso é proibido. Pode ter certo ponto, por uma determinada janela de tempo. Mas quando era o funk, não teve nenhum questionamento, teve menos comoção do que agora. E eu não acho que a música tem que ser política. Não acho que o L7 tem que fazer uma música politizada, não é a onda dele. Nem o Orochi.

Mas acho que se politizar, entender sobre o que acontece, é importante pra você saber onde você tá pisando. A galera fica falando como se o Oruam tivesse que virar uma liderança. Não acho que ele deva, mas ele pode – se ele quiser. É um cara inteligente. Mas é interessante que ele entenda um pouco mais os processos com o tempo. Não é da noite pro dia, tá ligado? E ficar esperto, né? É isso que você falou…

Tipo, muitas vezes os caras tão lá ganhando um monte de dinheiro e é aí onde se cruza uma certa linha que o status quo da sociedade brasileira se incomoda muito. Apesar de não ser nada revolucionário, entendeu? É muito louco porque tem uma certa permissão. Tem uma certa linha ali que não pode ser cruzada, mas que se fosse cruzada, também… O rap, recentemente, se tornou um fiador do sistema capitalista, do neoliberalismo. Isso no mundo todo. Nos Estados Unidos, no Brasil…

Porque o rap tem essa parada: “Ah, o moleque veio lá da favela e conseguiu uma ascensão. Hoje é um milionário.” É muito fácil de ser usado como um fiador do sistema. Quando a elite brasileira… Ou melhor, as pessoas que se consideram da elite brasileira começaram a ter que lidar com o fato de dividir o mesmo avião com uma pessoa pobre, foi um negócio..

Esse pensamento reflete uma pobreza, uma insegurança sobre o seu lugar social, sobre o seu status. Você se incomoda com o outro ali porque você tem medo do seu lugar estar ameaçado e tal. Então isso acontece no Brasil, independente de você ter grana ou não, entendeu? O lugar de onde você vem é muito levado em consideração.

Na última entrevista que eu fiz com você, você falou, você tinha dado um ano de RPA2, você falou que “o que pode ser mais político do que Cartola?”. No sentido de não necessariamente ter que colocar uma política direta nas letras, né?

Exato.

Me chama muito a atenção duas faixas nesse disco. Uma tem o sample do “Fico Louco”, do Itamar Assumpção e a outra é “Tristeza ou Não” (também do Itamar Assumpção) que você gravou com a Anelis Assumpção. Eu vejo uma semelhança entre o fazer do Itamar e a performance dele com o seu trabalho. O fato também de estar muito ligado a São Paulo, apesar de não ser de lá. Eu queria saber como é que o Itamar chegou para você e qual é a importância dele para a concepção do disco e pra você pessoalmente.

Cara, o Itamar sempre foi traduzido para mim pela Anelis Assumpção. É uma artista que contradiz tudo o que você pode pensar sobre o que é ser o que os caras chamam de “nepobaby”, porque ela não é! (Risos) O pai dela nunca foi um cara de alto sucesso, mas, ao mesmo tempo, ela consegue ter uma relação com a obra do pai dela muito bonita como artista.

Mas o Itamar mesmo tem uma obra que foi pouco aproveitada ao máximo pela indústria musical da época. É um cara que, enquanto showman… uma onda até teatral que o cara fazia ali no show. Você tem imagens de shows impressionantes do que ele fazia. O auge dessa coisa da Anelis foi quando ela fez uma peça de teatro, Pretoperitamar, que falava da história do Itamar.

Foi pra mim a obra mais bonita que eu vi. Que conseguiu conversar mais comigo. “Fico Louco” é uma música que eu queria samplear há muito tempo, mas não era possível. A produção dela é muito cheia, tem muita coisa… e eu só consegui fazer isso agora que tem uma tecnologia que você consegue separar as coisas de uma música. Ela não poderia ser produzida dois anos atrás.

Interessante essa ligação também com Tom Zé porque está muito ligado com a ida a São Paulo, de uma certa forma. Essa ironia estrangeira. O som muito estridente, urbano, com muito barulho, de invenção. Antropofagia, de uma certa forma

Sim! Essa gama de influências de todo lugar, de todo lado, pra fazer uma coisa própria.

Qual a importância de um disco pra cultura do nosso hip hop, trazer à tona ritmos e influências, primordialmente da década de 70, e também influências do funk no Brasil, em detrimento de um uso de uma drum machine gringa?

Pô, gosto muito que seja, porque é o que eu pensei, né? Eu já venho fazendo isso há bastante tempo. Realmente me recusei a ter batida gringa no disco. Antes eu fazia uma parada, tipo “Ah já que está todo mundo escutando drill, deixa eu fazer um drill que não é um drill, mas é um funk.” Aí tem aquela com o sample do Cidinho & Doca. Lá no Costa a Costa já tinha um reggaeton com o Carimbó, entendeu? Eu faço isso desde sempre. Mas agora, peguei pesado.

Agora eu falei “Mano, não quero nenhuma batida gringa nesse disco”. E tem várias vezes que tava surgindo. A gente tava lá e o Iuri [Rio Branco]: “Pô, mano! Isso aqui caberia um Memphis Rap. Caberia essa batida aqui, seria louco!”. E eu falei: “Mano, sem batidas gringas no meu disco.” E foi uma opção mesmo. Não queria, mano.

A gente fica o tempo todo correndo atrás da próxima tendência nos Estados Unidos. “Ah! Agora voltou o boombap”. Vamos todo mundo fazer boombap. “Ah, agora não é mais trap”. Aí vem o Detroit. “Não, mano, Detroit tá velho, agora é tal parada”… E os caras lá, eles já tão esgotados,os caras tão voltando o boombap porque eles também não tem mais o que inventar. Acabou o estoque deles de criatividade.

Eu acho que tá uma fase meio ruim do rap gringo, tá ligado? Não tá numa fase muito criativa. E você tá tipo seguindo o morto. Eu acho que eles é que tão olhando pra cá, na real. Mas obviamente eles não querem ver o rap do Brasil. O rap do Brasil fica seguindo eles.

Eles vão seguir alguém que tá seguindo eles? Eles vêm pra cá pra ver o funk, pra ver outra coisa… E aí eles vão lá e copiam algo do Brasil. Pega algo do Brasil, usa e aí o cara vai e copia o gringo que copiou uma coisa do Brasil. Acho meio ridículo isso. A batida que é mais parecida com o Boombap é a de “Iminência Parda” e ela não é um Boombap.

Ela é uma batida que vem de uma bateria “funkada” Brasil, que era, sim, um pouco, naquela época que a galera tava muito ouvindo o James Brown, ouvindo o soul, mas fazendo outras coisas. E aí tem a Jovem Guarda, tem a galera da Tropicália, tem o Pessoal do Ceará que fazia também outras coisas. É outra batida. Não é batida gringa. Eu acho que isso é uma coisa muito importante agora.

É interessante ver como o Don já tem essa característica realmente de trazer os samples fora da curva. Os samples que, como ele disse sobre o Itamar, não tiveram obra tão bem explorada pela indústria da época… E agora eu tô me lembrando da discussão lá do início do ano, quando começaram a falar sobre a Evinha. E o Don já tinha sampleado a Evinha há muitos anos atrás…

E sampleei a Evinha já nessa onda. Se você pegar o som que eu fiz com a Evinha, a batida é Brasil ali. Ela não é o Boom Bap, tá ligado?

Lá na gringa, um artista como o Kendrick Lamar, os caras botam mais investimento porque eles sabem que eles precisam de um investimento maior porque o som é mais complexo. Ele precisa vir traduzido melhor, ele precisa de elementos visuais, ele precisa de um show mais elaborado, precisa de um clipe mais elaborado mas o retorno é mais longevo. É maior. É por mais tempo. E é outro mercado.

Então acho que os caras como o Joca é um cara que precisa muito de mais investimento pra ele poder brisar nas ideias dele que já são louca assim, entendeu? Então tem o Joca, o Makalister é um cara que eu acho interessante também. Tem o Gallo de Fortal, FBC….

O Nego Gallo é um cara que tá aí há tantos anos e faz uma obra incrível e aí tem o Matheus Fazeno Rock que já é um hip hop por fora do hip hop e aí tem os artistas que eu gosto muito que não são do rap, que é o Giovanni Cidreira, tem Rachel Reis que eu participo do disco dela agora e tem uma galera também que não é nova que tá aí e sempre teve aí, o Rincon Sapiência, entendeu? E muitas vezes tem uma criação mais nova do que essa galera que se acha nova, mas só tá fazendo uma cópia de algo que tá vindo de fora, tá ligado?

Eu queria, pra finalizar, o que você tem escutado recentemente?

Cara, eu tô há bastante tempo sem ouvir nada, porque eu tô só produzindo o disco. E agora terminamos o disco e eu ainda não tive tempo. Assim, fui ouvir o disco da Rachel Reis [Divina Casca], que eu participo, agora. Inclusive recomendo, é um disco incrível, f muito bem feito, tá ambicioso. Ela não se acomodou no que ela tinha chegado ali, ela chegou de um jeito ali, num lance e tal, que ela podia só repetir aquela fórmula, mas ela foi muito além, muito interessante.

Mas quando você tá produzindo, você não escuta nada?

Nada, mano, não escuto nada. Não escuto nada, porque me dá ansiedade se eu escutar, tá ligado? Gostando ou não, tá ligado? Porque tá saindo coisa e você, porra, tá, galera lançando e lançando, e eu preciso lançar o meu disco, tá ligado?

Então eu fico numa ansiedade que eu não quero ter. E fora o tempo, às vezes não dá tempo mesmo, porque é um processo de imersão profunda mesmo. Eu tava ouvindo as coisas que eu tava pesquisando pro disco, na real, né?

Então você fica ali na onda de reouvir coisas que já tão dentro da tua cultura musical, porque o disco não é uma coisa de “ah, vou descobrir coisa nova agora”. Tem um pouco disso, mas é muito mais de reouvir as tuas influências, o que que te fez trazer pra aquela ideia que tu quer do disco.

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17/07/2025

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