Os fãs do shoegaze brasileiro podem se sentir contemplados com eternamente, (2025), segundo álbum do eliminadorzinho, lançado em setembro pela Cavaca Records. Entre riffs e suspiros, eliminadorzinho constrói uma teia sonora que se inspira nos clássicos indie, como Pavement ou Yo La Tengo, na visceralidade da Lupe de Lupe e até no ritmo de Pepeu Gomes, tudo isso com muita originalidade. De algum modo, as 15 faixas condensam a identidade da banda: sintonia, humor ácido, coração exposto e vontade de ocupar o mundo com sua música.
O trio paulistano formado por Gabri Eliott, João Haddad e Tiago Schützer compartilham uma longa estrada de amizade e criação musical desde a adolescência. eternamente, (2025) nasceu de uma explosão criativa coletiva, com quase todas as músicas compostas em cerca de seis meses, e com todos se dividindo nos vocais.
“Foi o disco que salvou nossas vidas. Finalmente o que era pra ser”, diz João, resumindo o impacto do processo, que ele descreve como “uma loucura, um frenesi, uma revelação”. Gabri completa: “Entramos um na mente do outro e cada um completava as frases, músicas e os instrumentais um do outro”.
Com produção assinada pela própria banda, ao lado de Calvin Voichicoski, Gabriel Olivieri e Rubens Adati, o disco é frenético, barulhento e amoroso. “Após 15 anos tocando juntos, seguimos como uma banda nova, com entrosamento antigo e energia infinita para conquistar o mundo”, resumem.
Na ativa oficialmente desde 2016, o eliminadorzinho já havia conquistado espaço com Rock Jr (2021), eleito um dos melhores discos do ano pela APCA, e o EP Lapso (2019), parceria com o mineiro Fernando Motta. O rock do grupo não conhece fronteiras: da abertura instrumental “Tema do Centro da Terra”, que homenageia o Espaço Cultural de mesmo nome em São Paulo, passando pela pancadaria de “A cidade é uma selva” — uma analogia indireta a “Welcome to the jungle”; até chegar ao alt-R&B quase safado de “Sopa e café”, o disco traz um mix de estilos e referências distintas.
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eternamente, faixa a faixa:
“Tema do Centro da Terra”: foi composta em uma tarde de ensaio, para o nosso primeiro show no Centro da Terra, a convite do [jornalista] Alexandre Matias, em uma tarde de ensaio. Percebemos que tinha espaço pra mais uma música no disco e trouxemos de volta, rearranjando e reaprendendo a tocar, e deixamos como uma introdução do disco. É a nossa primeira (e até agora única) faixa instrumental. Gosto que, como é um álbum extenso, ela funciona quase como uma introdução de ópera rock: como se estivéssemos viajando a um zilhão por hora pra chegar no universo do disco.
“A cidade é uma selva”: essa foi a primeira composição pós-Rock Jr, a mais antiga do disco, e ela nasceu inteira, de um improviso comandando pelo Tiago. Mesma lógica com que escrevemos “Canção pro Tony andar de skate”, do Rock Jr. E graças a Deus temos provas, porque senão, ninguém acreditaria: coloquei o meu celular pra gravar antes da gente começar a jam e saiu a música inteira. Algum dia vamos lançar essa primeira versão. Essa gravação de celular é a escritura sagrada dessa música. Quando entramos no estúdio, fizemos jus à gravação inicial. Meio música de sala de espera de manicômio.
“Viação Andorinha”: primeira música que o Hadd trouxe pra banda, fortemente inspirada pelo “ear-bleeding country” do Dinosaur Jr. O break no meio me lembra Superchunk, e o riff no final dela é inspirado em “Father of a sister of thought”, do Pavement. É uma música e letra bem auto-explicativa, canção de corno como todo bom sertanejo tem que ser, música pra esconder o chifre com o chapéu. Uma das nossas preferidas de tocar ao vivo.
“Blondie”: segunda música do disco que foi construída 100% em um improviso comandando pelo Tiago, com toda a letra e o arranjo surgindo logo de cara, como mágica. Tem trechos meio besta, tipo “eu você é legal”, e outros que dão um nó na cabeça: “menina do cabelo amarelo, eu quero ser você”. Até por isso acho que pode ser a nossa maior canção de amor, essa bagunça linda e esquisita que é o amor. Meio Pixies, meio Fugazi, meio Lupe de Lupe.
“Golpe baixo”: nossa música mais próxima das ideias apresentadas no Rock Jr., mas que tem uma evolução clara. Bastante influenciada por Polara e pelo nosso grande amigo Marchioretto, o quarto eliminadorzinho, que inclusive canta na faixa. Foi uma dessas músicas feitas “sob própria encomenda”, como “Pompeia” tinha sido no Rock Jr. Paramos e pensamos: “o que mais cabe nesse disco?” e construímos a partir daí. O fim é um pouco do que eu queria ter feito no fim de “Baixo Astral”, mas dessa vez mais heavy metal do que melodramático. O verso do Marchioretto veio dele, e a entrega vocal dessa música faz ela ser uma das melhores coisas que a gente já gravou.
“Não me deixe no almoxarifado”: uma das nossas favoritas do disco, parcialmente pelo processo: veio de uma progressão de acordes do Hadd, mas a letra era quase um spoken word. Peguei pra fazer a letra e ficou muito meloso, uma letra clichê comparando um amor que terminou com peças de roupa de inverno e de verão. O Hadd pegou algumas das ideias e refez a letra, e a gente foi encaixando a melodia.
A descida no meio da música veio de um ensaio, e o Tiago trouxe “eu só quero ser seu namorado” — um trecho refrescantemente direto pra uma música que é um tanto abstrata, e uma referência a uma composição de um amigo nosso, Felipe Kouznetz — e eu preenchi com “não me deixe no almoxarifado”, Naturalmente desaguou em uma interpolação de “Dear Prudence”, uma das nossas favoritas dos Beatles. É de chorar, mexe com a gente.
“Vaivém”: se o Pepeu Gomes tocasse no Yo La Tengo. Outra composição incrível que o Hadd trouxe meio pronta. O órgão que entra no final foi uma ideia do nosso queridíssimo co-produtor Rubens Adati, e como nós temos uma longa história com Deep Purple, resolvemos acatar a ideia chamando justamente o Guilherme, irmão do Tiago, que nos apresentou a faixas como “Hush” e “You fool no one”. As paradas e voltas, pra mim pelo menos, remetem a “Shady Lane” do Pavement, e o órgão com efeitos no finalzinho me traz um gosto de Cocteau Twins que eu adoro.
“Querubim”: forte candidata à melhor música do disco, ela surgiu meio como uma tentativa de plagiar “Cannonball”, dos Breeders. Acabamos quebrando um pouco o riff de baixo e pegamos influência de “Lose You”, faixa da Bully com a Soccer Mommy. Deu no que deu. Tive muita dificuldade de pensar numa letra no começo, mas o Tiago sugeriu, quase profeticamente, o nome “querubim”.
A ideia remete um pouco aos temas explorados em “Blondie”, a forma que traz o amor como identificação, mas agora mais como tesão e obsessã. É um tanto sobre transicionar e se entender como uma travesti lésbica e os horrores além da compreensão que acompanham essa descoberta. A guitarra martelada do refrão e o feedback explosivo são inspirados em “Mayonaise”, do Smashing Pumpkins. Temos orgulho dela sempre que vemos a galera dançando junto nos shows.
“Cinza e carmesim”: tinha esse riff há muitos e muitos anos, mas num ritmo meio emo/shoegaze. Larguei ele e nesse meio tempo fiquei viciada em PJ Harvey, e inspirada nela, refiz esse rif. Muitos anos atrás, olhando as ciclofaixas na Paulista, essa combinação de cores surgiu na minha cabeça.
Comecei a construir uma letra mais abstrata e visceral, tentando fugir dos meus vícios líricos, sobre transicionar e encontrar força na raiva. O refrão é, não intencionalmente, muito parecido com “Máscara”, da Pitty. A ponte é, intencionalmente, Nirvana. O Rubens sentou e em um take escreveu a melhor guitarra solo do mundo. Ela chama atenção justamente pela simplicidade e raiva dela, é muito boa.
“Sopa e café”: se no Rock Jr. tentei fugir um pouco do “rock triste”, eu considero esse disco e essa música especificamente a minha tentativa de escrever um disco sexy. Juro. Pensei primeiro nesse conceito do aroma de sopa e café, a partir de uma experiência sexual, mas também como símbolos que conectam a noite e o dia. Depois disso vieram as ideias dos acordes e de fazer uma música bem In Rainbows, tentando puxar esse alt-R&B-triste-safado, de onde inclusive veio a ideia de colocar uma “percussão oral” no meio acompanhando a bateria.
Depois o Tiago e o Hadd transformaram em parte da letra, o que é referência de “Fim de festa”, do Itamar [Assumpção] com o Naná [Vasconcelos], que constrói algumas letras tão fortes líricas quanto foneticamente. É uma música para se escutar a um milhão de decibéis, para se envolver e resfolegar na mesma altura.
“Você vai me escutar”: ao meu ver, o hit “secreto” do disco. É um riff totalmente Pavement, nessa pegada meio rock ‘n roll-slacker. Considero as mudanças de andamento da música alguns dos melhores momentos do disco inteiro, e nas poucas vezes que tocamos ao vivo, já percebemos que a galera se amarrou. É uma sensação incrível. Rock sobre amar e sobre amar o Rock. Acho que vai ser ainda mais forte na turnê do disco!
“Alguma hora você vai ter que tirar a roupa do varal”: essa é uma das maiores letras do disco justamente pelo seu peso lírico: ela vale para tantas situações de convivência extrema, seja entre irmãos, entre amores, ou entre amigos ou colegas de apartamento. Ela vai pra muitos lugares, tem acordes muito diferentes. O último refrão começa com uma puxada vocal que lembra Fat Family, e o solo (que chegou no final, quase não teve) é extremamente Oasis.
“Tá legal/Se lembra?”: crua, densa, deliciosa. Ela é muito clichê e melodramática e até por isso, desde sempre a decisão foi gravá-la ao vivo, em um take único, sem correção de vozes ou overdubs. A única coisa que cedemos foi o backing vocal do Tiago, sugerido pelo Rubens e pelo Gabriel, e ficou lindo demais. Traz um ar angelical que faltou na música. Composição inspirada em “Lover, you should’ve come over” do Jeff Buckley e “Idas e vindas do amor” da Sophia Chablau.
“Chap chap chuap pop”: essa demorou bastante tempo pra desenrolar. Nunca falamos muito da música enquanto ela era escrita, mas é sobre a banda e nossa relação como amigos: o nosso mundo particular, a inadequação social que caímos de vez em quando, e o empurrão que cada um dá no outro quando preciso. Ainda não estreamos nos palcos, então tenho muita expectativa pra ver a galera gritando e dançando ao som dessa.
“Você me deixa coisado (Bonus track)”: uma “bonus track” forçada — foi gravada impromptu enquanto terminamos de gravar os overdubs no Inhamestúdio. Era uma composição que o Hadd já tinha mostrado depois de termos terminado as bases, quando começamos a tocar percebemos que o Rubens estava gravando tudo secretamente. Foi um take e ficou perfeito. Mas acho que os sons se sobrepondo adicionam ainda mais à canção, e é um encerramento perfeito pra essa hora intensa de rock barulhento.