Em turnê, Vanessa da Mata celebra clássicos dos 23 anos de carreira e o repertório de Todas Elas (2025). Lançado em maio, o álbum já nasce com pinta de clássico, cheio de referências, que vão de Gal Costa a Stevie Wonder, e um retrato da própria trajetória de Vanessa, que reverencia o protagonismo feminino.
Da estreia com o homônimo Vanessa da Mata (2003), a artista se provou plural, na voz e na caneta – esta última passou também pela literatura com a publicação do livro A Filha das Flores – Na adolescência, Vanessa subiu pela primeira vez em um palco, e o resto é a história viva, que acompanhamos até hoje.
Todas Elas (2025) traz 11 faixas autorais, produção própria e participações de João Gomes, Robert Glasper e Jota.pê. A versão deluxe ainda conta com regravação de “Nada Mais”, clássico eternizado por Gal Costa, que é a versão em português de “Lately” de Stevie Wonder.
Na agenda estão shows marcados até o fim do ano. No próximo acontece em Santos, nesta sexta-feira (26/9) e em Campinas (27/9). Outubro começa agitado com Porto Alegre (3/10), Ribeira do Pombal (12/10), Goiânia (17/10) e Rio de Janeiro (18/10), veja datas aqui.
A Noize conversou com Vanessa sobre o álbum – do processo criativo, passando pelas parcerias a faixa em homenagem em Gal Costa – participação no musical de Clara Nunes, seus ícones literários e o protagonismo feminino, confira o papo na íntegra:
Como se deu o processo criativo de Todas Elas (2025)?
A escrita pra mim é quase terapêutica, funciona como uma catarse. Sinto uma necessidade diária, é um dever comigo mesma. Geralmente, vou para um lugar e escrevo. Muitas vezes, além da letra já tem ideia da musicalidade. A inspiração vem através de diversos aspectos da vida. Presto atenção aos detalhes, em diversas coisas, o tempo, o nascer do sol, a chuva, as folhas que caem, a vida como um todo. A correria também faz parte da minha vida e contribui para o meu processo criativo. Eu não consigo parar muito, estou sempre pensando em novas coisas e novos projetos.
Muitas músicas como “Eu te apoio em sua fé, Ciranda, Maria sem vergonha” são manifestos de repúdio e protesto. São muito fortes quanto a vários assuntos sociais, representam meu grito e o que temos que mudar, como sociedade, o mais cedo possível. Pela sanidade de todos.
Vanessa, são quase diversos álbuns na sua discografia. Todas Elas (2025), seu novo álbum, também versa sobre a identidade feminina. O que diferencia o Todas Elas (2025)?
O Todas Elas (2025) é um álbum que poderia contar a histórias de várias mulheres. São várias mulheres dentro dele: mulheres que compõem a minha pessoa, as minhas facetas, os meus momentos. É um olhar sobre a vida, a mulher e o amor.

O álbum foi criado em apenas quatro dias, logo após sua participação no musical sobre Clara Nunes. Pode nos contar como essa fase criativa intensa aconteceu?
Eu estava totalmente exausta após o musical sobre a Clara Nunes, que foi um sucesso inimaginável. Fiz, pela primeira vez, um mergulho como atriz. Quando saí desse musical, a cabeça não parou de fazer músicas lindas, aí eu comecei e eu produzi. A base do disco foi feita em 4 dias, as músicas não paravam de jorrar na minha cabeça, e eu não conseguia dormir.
Foram dias bem intensos, e eu já estava cansada, mas era como se o meu corpo estivesse precisando fazê-lo, era uma necessidade de criação mesmo. Eu, como sempre fui intensa, me vi intensa novamente. Acho que ele veio dessa forma.
Esse disco tem muitas versões de mim, é como se fosse uma Matrioska, aquela bonequinha russa, que vc vai tirando as camadas, são várias versões de situações, várias Vanessas, e diferentes contatos com essas personagens, que eu me permito escrever nas minhas canções. Muitas vezes não é sobre mim, mas como eu vejo as situações, sobre um aspecto de observação. É um disco cheio de muitos ritmos, como sempre. Pra mim é o meu melhor disco.
Aproveitando sobre a Clara Nunes, como foi a experiência de viver ela nos palcos?
Acabei o musical de Clara Nunes sendo ovacionada de pé no meio do espetáculo e no final. Jorge Farjalla dirigiu com muita criatividade esse musical e fazer tão intensamente como atriz, com várias cenas e textos enormes, me deixou exaurida e feliz pela própria trajetória de Clara e por contar um pouco mais da sua/ nossa história de uma das baluartes brasileiras. Eu sou idealizadora desse projeto e ele me ajudou muito a mudar uma rotina com muito mais disciplina quanto às aulas de canto, por exemplo, pelas quais nunca tinha me dedicado tanto.
Fazer o musical da Clara Nunes me arrebatou totalmente a própria seriedade de todos os artistas terem o Rafa Miranda como preparador vocal, fazendo os treinamentos, entrando num repertório completamente novo, dos anos 60, 70. Pra mim foi muito engrandecedor, foi uma evolução enorme. As minhas músicas começaram a ser cantadas de uma maneira muito mais fácil, mais gostosa, e eu continuei com o Rafa depois do projeto, continuei com ele para cantar as minhas canções, e isso me faz muito bem.
Acho que nesse disco fica perceptível como eu canto com uma técnica que me ajuda a fazer as canções de uma maneira mais exata e divertida. Eu consigo manter a voz da forma que eu quero, o que é muito difícil. As cordas vocais são os menores músculos do nosso corpo e, para você dominar, são muitos anos de treinamento. Esse treinamento eu tive e continuo tendo, não vou dispensar. “Todas Elas”, com certeza, é o disco em que eu canto melhor até agora.
Todas Elas (2025) navega por gêneros como reggae, soul, e jazz. Como foi o processo de integrar essas sonoridades no repertório?

João Gomes canta um reggae comigo. Também tem R&B com o produtor e músico muito importante que é o Robert Glasper, em uma parceria que gosto muito e é uma ode ao Brasil profundo! Eu acho que o trabalho de um músico não pode ser engessado.
Eu sempre tive muito respeito e amor pela música brasileira. Nasci em Alto Garças, no Mato Grosso, então sempre estive em contato com ritmos que vão além dos que chegam no Sudeste. Eu acho que a geografia ajuda muito nessa coisa polirrítmica. Essa modalidade polirrítmica é muito minha desde sempre e me sustenta muito nessa variedade do canto, que me faz muito bem.
Eu busco parceiros que me acrescentem. Acho que essa mistura me inspira a fazer algumas músicas alegres, dançantes, outras mais intimistas, que atraem e dialogam com diferentes públicos. Pra mim esse é o papel da música, ser ouvida por todos.
Se pudesse definir Todas Elas (2025) em 3 palavras, quais seriam?
É um álbum que conta a história de muitas mulheres, então é difícil definir esse trabalho em três palavras porque é um projeto muito potente para mim. Ele debate temas importantes que precisam ser discutidos na nossa sociedade como a intolerância religiosa.
Talvez seja clichê definir o trabalho em três palavras, mas acredito que força, fé e libertação estão bem presentes nas mensagens que quero passar com esse trabalho. É um disco de muitos manifestos, muitas observações, histórias, de uma contadora de histórias com harmonias e melodias que eu gosto de ser!
Canções como “Ciranda” e “Maria Sem Vergonha” abordam empoderamento feminino. Como essas histórias surgiram e qual o impacto esperado?
Eu sou mãe solo, o pai dos meus filhos mora na Suíça há anos e “Ciranda” aborda esse tema e é uma música que fala de uma mulher que veio de um lugar onde a sede é pior que a fome. “Maria Sem Vergonha” contesta o lugar que a sociedade tenta colocar as mulheres, que precisamos seguir algumas regras, ter um comportamento padrão para sermos aceitas, questiona esse aprisionamento. Falo de coisas que a gente vê na sociedade e que precisam mudar. São assuntos políticos e sociais importantes que são retratados nessas músicas.
Em “Eu Te Apoio Em Sua Fé”, você denuncia intolerância religiosa com muita delicadeza. Como é pra você tratar sobre esse assunto?
É uma música que escrevi após um episódio que me marcou, vi uma reportagem que contava a história de um babalorixá que estava com uma camiseta de Jesus Cristo sendo atacado por uma facção. Quebraram tudo e não perceberam a camiseta, o que para mim era um sinal espiritual enorme e isso me entristeceu profundamente.
É uma música que as pessoas estão prestando pouca atenção e que merece muito mais destaque, uma atenção maior. Eu acho que a música sempre foi um veículo enorme para lutar contra as injustiças, os preconceitos e o racismo. Ela propõe, realmente, uma reflexão, quando é usada pra isso, e essa música fala sobre isso: o que as pessoas estão fazendo? Que distorção é essa? Eu acho que essa música vai apoiar muita gente de fé.
Todas Elas (2025) tem feat com Jota.pê, Robert Glasper e João Gomes. Como foi a escolha das parcerias?
O João (Gomes) já é um amigo querido que admiro muito. Gosto muito da voz dele, gravíssima, que faz um casamento perfeito com a minha nesse reggae. A música com o Jota.pê fala sobre a aparência das redes sociais, que jamais mostra psicologicamente como realmente estamos.
Foi uma música muito rápida de ser feita. Ela fluiu em uma capacidade linda. Ele me mandou a primeira parte da melodia e eu fiz o restante. E fizemos a letra juntos. O Robert Glasper é um dos caras mais notáveis dos últimos tempos. Certa vez eu fui em um show dele em São Paulo, fiz contato e mandei um material para ele. Ele gostou muito e me mandou várias ideias de música, e aí a gente fez essa parceria.”
Como surgiu a ideia de regravar a música “Nada Mais”?
Eu nunca tinha gravado Gal. Uma vez eu fui passar o som uma vez no programa Sérgio Groisman com a música Nada Mais, totalmente despretensioso, e isso viralizou, as pessoas começaram a pedir, eu achei que Gal merecia ser falada agora, da sua grandiosidade, da sua voz perfeita, cristalina e trouxe ela de volta, achei que daria para fazer uma canção de certa forma com novos elementos e trazendo outras ideias, mesmo tendo uma versão que parece quase inalterável, que é a versão de Gal. Eu achei que era providencial, para lembrar dela e para trazer a sua imagem de volta.
Além da música, a literatura sempre fez parte da sua obra. Depois de A Filha das Flores, há alguma nova produção a caminho? Quais são suas inspirações/referências literárias?
No momento estou focada na turnê Todas Elas (2025) e na divulgação do álbum. Mas tenho muitas coisas que ainda quero realizar. Estou escrevendo um novo livro que, se passar pelo pior teste da sua vida, minhas críticas, acho que ele sobreviverá para vingar e contar sua história. Eu me inspiro em Machado de Assis, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Mario Quintana, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto…
Qual mensagem você espera que o público ouça e leve consigo com este álbum?
Espero que todos que escutarem o álbum consigam refletir sobre os assuntos que estão presentes no álbum. Que as músicas de Todas Elas (2025) sejam compreendidas e que os ouvintes entrem nas histórias, divirtam-se, cantem e dancem com as músicas do álbum.