No coração de São Paulo, onde a cidade nasceu sob as bênçãos dos jesuítas, uma nova narrativa ocupa o Pateo do Collegio: da favela, da negritude e da resistência. Em cartaz até 31 de agosto no Museu das Favelas, a exposição Racionais MC’s: O Quinto Elemento não apenas celebra a trajetória do maior grupo de rap do Brasil, como também propõe uma imersão nas estruturas simbólicas, sociais e políticas que tornaram os Racionais um fenômeno cultural e alvo constante de perseguição. Ao se debruçar na história e na obra do grupo, a mostra suscita reflexões sobre como Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock operaram um resgate na autoestima do povo preto e construíram uma nova estética periférica através de um estereótipo marginal criado como forma de resistência.
A primeira coisa que chama a atenção é a própria localização no Museu das Favelas. Até agosto de 2024, sua sede era no Palácio dos Campos Elíseos, e desde dezembro, a instituição funciona no Pateo do Collegio. Ou seja: ambas as sedes localizadas em regiões centrais da cidade, distante das periferias das Zonas Sul, Norte ou Leste, por exemplo, onde se concentram boa parte das favelas de São Paulo. Contudo, de acordo com o site da instituição, sua missão é conectar e garantir o protagonismo das múltiplas favelas brasileiras, preservando suas memórias e potencializando suas produções culturais.
Sob essa ótica, entende-se que a instalação do Museu das Favelas no Pateo do Collegio, marco inicial da cidade de São Paulo, é dotada de um certo simbolismo. Afinal, leva essas produções culturais periféricas a um local fundamental para a memória e para a identidade do município, reivindicando, assim, a participação central das favelas e de seus moradores na essência da cidade fundada por jesuítas naquele mesmo largo.
A mostra sobre os Racionais está localizada no terceiro andar do museu e passa, nesta ordem, por noções de simbolismo, ancestralidade, trajetória, legado e memória. Logo no início, abrindo os caminhos da exposição, há uma imagem de São Jorge — ou Ogunhê, como clama Ice Blue na faixa “Jorge da Capadócia” — representando a fé e o sincretismo religioso presente na obra do grupo. “Essa fé é o escudo dos Racionais MC’s, o grupo mais caçado dessa terra”, diz o cartaz ao lado da imagem.
Na sequência, ainda dentro da ideia de simbolismo, há a fantasia do palhaço (Joker) usada pelos dançarinos do grupo nos shows, como uma figura de afronta que se tornou muito popular nas quebradas, seja em tatuagens, adesivos colados nos carros e motos ou em camisas de times de futebol de várzea, por exemplo.
“Benção, mãe” é o que está escrito no meio de espécies de bandeiras com os rostos das genitoras de Ice Blue, KL Jay, Mano Brown e Edi Rock, em uma antesala que abre a noção de ancestralidade na exposição. A homenagem e a exaltação da figura materna dialogam com a noção de mãe preta, abordada por Lélia Gonzalez (1984), no sentido da mulher negra como símbolo de resistência e força. “Aqui, na quebrada, a gente tira o chapéu para as rainhas que, com amor e batalha, forjaram não só os caminhos de seus filhos, mas também de uma era toda”, diz o texto de apoio na parede da exposição.
Entre os Racionais, Ice Blue e Edi Rock são retintos. Já Mano Brown e KL Jay têm a pele ligeiramente mais clara, sem contar que o último tem vitiligo. Por isso, vez ou outra podem até passar imunes ao preconceito de marca — no conceito de Oracy Nogueira — predominante no Brasil, onde o tom de pele tende a ser mais levado em consideração do que a origem do indivíduo. Testes de ancestralidade genética, contudo, mostram que o continente africano está fortemente presente no DNA dos quatro integrantes, o que encerra possíveis dúvidas sobre suas origens. Na exposição, um quadro ilustra esse panorama, mostrando as porcentagens que cada um dos continentes representam no DNA dos músicos. “A principal tática, herança de nossa mãe África!”, diz o rodapé do quadro, que finaliza a seção focada em ancestralidade.
A seguir, itens pessoais como documentos, fotos, desenhos feitos quando crianças e discos contam a história de cada um dos Racionais, abrindo caminho para a seção que se debruça sobre a trajetória profissional do grupo. Ela é composta por diversos stands, cada um dedicado a um álbum, desde o EP Holocausto Urbano (1990), até o álbum ao vivo Racionais 3 Décadas (2023). Particularidades de cada um dos trabalhos são exploradas nos stands, que também apresentam as folhas de caderno originais nas quais grandes hits como “Jesus Chorou” e “Dá Ponte Pra Cá” foram escritos.
A exposição segue para uma sala cujas paredes são cobertas por diversas fotos de tatuagens feitas por fãs em homenagens aos Racionais. Capas de disco, trechos de músicas, a frase “Vida Loka” ou simplesmente o nome do grupo são algumas das artes comuns nas peles dos admiradores. Complementando a ideia de legado, o local também conta com as roupas usadas no desfile de Carnaval de 2024 da escola de samba paulistana Vai-Vai, que na ocasião apresentou o samba-enredo “Capítulo 4, versículo 3 – Da rua e do povo, o hip hop: um manifesto paulistano”, em homenagem aos Racionais MC’s.
Memória e resistência
A noção de memória é abordada naquela que considerei a sala mais emocionante da exposição. Luzes baixas, mensagens religiosas pichadas na parede e velas no chão criam um ambiente tocante em homenagem aos “trutas”, os “guerreiros de fé” que seguiram os preceitos do Vida Loka e, de uma forma ou de outra, ajudaram a eternizar o estilo de vida preconizado pelos Racionais. Sabotage, Chorão, MC Kevin e Dina Di são algumas das figuras presentes na sala, representadas por imagens e pequenas biografias de cada um. Depois dessa, a sala final conta com monitores reproduzindo mini documentários sobre cada um dos integrantes dos Racionais, e o visitante tem a chance de deixar um recado escrito em um mural.
Vale citar também que, ao final da exposição, há uma pequena lojinha com itens da Boogie Naipe Store, loja da produtora dos Racionais. Contudo, camisetas vendidas a mais de R$ 100 e moletons a R$ 300 pareciam não condizer com o público com o qual, teoricamente, a obra dos Racionais MC’s tende a dialogar.
Os Racionais se consideram o grupo mais caçado da Terra, como consta no primeiro texto de apoio da exposição, e a lógica dessa afirmação remonta ao século XIX, quando os primeiros antropólogos brasileiros passaram a exercer uma importação seletiva de teorias raciais estrangeiras, em busca de bases evolucionistas, darwinistas sociais e até mesmo eugenistas para estabelecer teses como a da degenerescência natural de determinadas raças, que seriam um fator preponderante para o atraso brasileiro. A partir desse movimento, os cortiços e favelas, além da presença de negros, mestiços e índios, passaram a ser entendidos como entraves para o processo civilizatório do país.
Ice Blue, KL Jay, Mano Brown e Edi Rock são quatro homens pretos que, no momento de criação do grupo, eram pobres e moradores de periferia. Portanto, estão inseridos na nebulosa fronteira entre os representantes das “classes pobres” e “classes perigosas”, conforme descreveu HA Fregier (1840). Ao fazer um estudo sobre “malfeitores”, o teórico francês falhou em determinar com precisão a diferença entre essas duas classes, e é nessa indistinção que se consolida a ideia de que a pobreza de um indivíduo é suficiente para torná-lo um malfeitor. Os Racionais estariam, assim, na base do Darwinismo Social proposto por Herbert Spencer e, portanto, sob a ótica do médico criminologista Nina Rodrigues (1899), seriam criminosos por natureza e deveriam ser segregados por meio dessa criminalização. De acordo com João Batista Lacerda (1911), aliás, a expectativa era a de que, até 2011, eles sequer existissem mais, como reflexo da política do branqueamento.
Em Cidade Febril: Cortiços e Epidemias Na Corte Imperial, Sidney Chalhoub (1996) relembra a demolição do cortiço Cabeça de Porco, no Rio de Janeiro, em 1893, resgatando também o deleite da imprensa e das autoridades da época diante do movimento. O entendimento geral era o de que as habitações coletivas eram um antro de vagabundos, viciados e desordeiros e, além disso, que a demolição desse e de outros cortiços significava uma tentativa de desarticulação dos movimentos sociais urbanos, uma vez que boa parte de seus moradores eram negros, mestiços e abolicionistas. No Brasil dos Racionais, praticamente não há mais cortiços, mas sim um grande equivalente: as favelas. E nelas, a lógica de repressão é a mesma.
Aqui, já temos elementos suficientes para entender o motivo do grupo se considerar perseguido. Mas o que o faz ser o mais “caçado” da Terra? A resposta passa pelo fato dele ter conseguido transformar a favela em um lugar de intensa produção cultural, trazendo autoestima, consciência racial e armas para o povo preto e periférico lutar contra o racismo estabelecido das mais diversas formas.
“Vida Loka, Pt.1” e “Vida Loka, Pt.2”, faixas do álbum Nada Como um Dia Após o Outro Dia, de 2002, são duas das mais conhecidas dos Racionais. Mais do que isso, batizam uma ideia, um estilo e modus operandi articulado pelo grupo e que se espalhou pelas quebradas de todo o país. O “Vida Loka” é uma espécie de Robin Hood ou Ladrão Nobre, conforme descrito pelo sociólogo britânico Eric Hobsbawm (1969) em seu livro Bandidos. Ou seja: é aquele que rouba dos ricos para dar aos pobres, é perseguido, corrige as injustiças e é admirado pelo seu povo. Não à toa, segundo os Racionais, o “primeiro Vida Loka da história” foi São Dimas. Na tradição cristã, conforme descrito no evangelho de Lucas, Dimas foi um ladrão crucificado ao lado de Jesus Cristo e que, tendo reconhecido seus pecados naquele momento, arrependendo-se deles, foi perdoado e recebido no Paraíso. Assim, é conhecido como “bom ladrão”, sendo considerado o padroeiro dos prisioneiros e protetor dos pobres.
A grande diferença é a de que, em Racionais, não há crime de forma efetiva, mas, sim, figurada. A grande transgressão do grupo está em dotar o seu público de consciência e, mais do que isso, força e sentido para enfrentar as mazelas deixadas pelo darwinismo social, pelo racismo científico e pela perseguição às classes pobres de uma forma geral. O Vida Loka é aquele que, entendendo que seu perfil é criminoso sob a ótica das autoridades, vai vestir a carapuça do bandido da forma mais nobre possível: transmitindo conhecimento aos seus, fomentando o senso de comunidade e lutando contra as injustiças. “Vida Loka, eu não tenho dom pra vítima/Justiça e liberdade, a causa é legítima”, diz o trecho de Vida Loka, Pt.1.
Essa ideia não se limita à atitude, mas também ao estilo. O joker, o palhaço, por exemplo, presente na exposição, é um dos símbolos nesse sentido. “É um protesto irônico(…)Joker quer nos mostrar que, independente das adversidades do dia a dia, como o racismo e a desigualdade social, devemos estar de cabeça erguida, preparados fisicamente e mentalmente para lidar com os problemas”, diz o texto de apoio da mostra. Pouco a pouco, por meio de símbolos como esse, foi se criando uma cultura de favela que traz essa ideia de afronta também na vestimenta, com óculos escuros de lente espelhada colorida, bermudas longas de veludo ou tactel, meias altas, tênis coloridos de mola e camisas de time, por exemplo.
A perpetuação desse estilo nas quebradas, aliás, fica claro em outra exposição do Museu das Favelas, localizada no segundo andar e chamada “Sobre Vivências”. Nela, há diversas fotos de moradores de periferias que ostentam esse mesmo visual, que inclui também shorts da marca Bad Boy para as mulheres e o cabelo “nevado” ou descolorido para os homens.
No dia da minha visita ao Museu das Favelas, eu estava usando uma camiseta do Jorge Ben Jor. Ao terminar minha visita, ainda dentro da instituição, sentei em um banco e fui abordado por um guia, que elogiou a camiseta. Agradeci e falei pra ele que Jorge Ben e Racionais tinham tudo a ver. Curiosamente, ele me relatou sobre um episódio no qual ele estava com uma vestimenta típica desse “estilo de quebrada”, com uma camisa do Corinthians e um óculos escuro espelhado, quando encontrou uma pessoa com a mesma camiseta que eu usava. Ao elogiar o indivíduo, foi surpreendido com a resposta de que “ele não tinha cara de quem gostava de Jorge Ben”, como se alguém da periferia ou alguém com aquele estilo não pudesse ou não fosse capaz de apreciar a obra do cantor e compositor carioca. Por vários minutos, conversamos sobre a incoerência dessa frase e sobre o desconhecimento que aquela pessoa tinha sobre o artista do qual supostamente era fã.
Um dos grandes trunfos da obra de Jorge Ben Jor foi a exaltação à negritude, seja por meio da adoção de ritmos afro-diaspóricos, seja pelas próprias letras. Em uma época na qual o que fazia mais sucesso eram movimentos como a Jovem Guarda, composta em sua maioria por artistas brancos, de cabelo liso e roupa social, Ben trouxe representatividade e dotou o negro de potência e autoestima. Não à toa, batizou o seu álbum de 1971 como Negro é Lindo, traduzindo o slogan “black is beautiful” do movimento cultural estadunidense dos anos 60.
É justamente aí que mora uma das principais semelhanças entre Racionais e Jorge Ben Jor, bem como um dos principais trunfos do grupo paulistano e, consequentemente, um dos grandes motivos para a sua “perseguição”. Por meio de uma produção cultural periférica e, portanto, transgressora e subversiva por natureza, Ice Blue, KL Jay, Mano Brown e Edi Rock fomentaram uma ideia, um estilo, uma cultura de favela que atravessou gerações e se tornou um símbolo daquele povo. A sala da exposição que mostra as tatuagens dos fãs, bem como a exposição do segundo andar com fotos de pessoas da periferia são exemplos disso, explicitando o legado cultural que os Racionais deixaram.
Evidentemente, devido ao tamanho sucesso, o grupo “furou a bolha” e hoje se apresenta em locais elitizados e com ingressos caros, ainda que sempre tenha se negado a tocar em programas de televisão da TV Globo, por exemplo. Mas, mais do que isso, o importante é notar como a obra dos Racionais foi capaz de, usando a repressão como munição, transformar a favela em um local de intensa produção cultural, despertando consciência racial e resgatando a auto estima dos pares, consolidando-se assim como uma peça fundamental na busca da superação do racismo pelo próprio negro.