Quando tudo mudou, era mais um dia comum em Salvador, na virada da década de 1950 para 60. Naquela tarde, Gilberto Gil estava almoçando, e parecia só mais uma refeição em família, mas não. Este almoço testemunhou um daqueles instantes simples cujos desdobramentos se mostram capazes de redesenhar os rumos dos acontecimentos futuros.
Enquanto comiam, um som estarrecedor alcançou a mesa e mudou a vida de Gil para sempre. Era a Rádio Bahia, que estava sintonizada no aparelho da casa. A emissora pôs no ar uma música nova, que ele nunca tinha ouvido. Seu título, disse o locutor, era “Chega de Saudade”. O intérprete era um artista baiano, um tal de João Gilberto.
O baque da bossa
Uma descrição precisa do que é a bossa nova pode ser encontrada no Dicionário da História Social do Samba (2015), de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas: “Nome pelo qual se tornou conhecido o movimento de renovação do samba difundido a partir da zona sul do Rio de Janeiro, no fim da década de 1950, e estendido ao estilo de interpretação e acompanhamento dele emergido”.
Não há dúvidas de que o que ficou conhecido como “bossa nova” é o resultado da soma do trabalho de muitas pessoas, uma confluência ímpar de artistas que despontaram de meados dos anos 1950 aos 60. Ao mesmo tempo, ninguém discorda que o mais emblemático de todos os envolvidos naquele movimento é o cantor e violonista baiano João Gilberto.
Em seu livro, Lopes e Simas pontuam que, antes de João, outros músicos, como Garoto, Oscar Bellandi e Vadico, já vinham alterando as harmonias do samba, introduzindo novos acordes e escalas menos convencionais. O pianista Johnny Alf, por exemplo, tem tido um importante reconhecimento recente quanto ao seu pioneirismo na “renovação do samba” a que se referem os autores. Mas não é só a questão harmônica ou a rítmica que explicam a centralidade de João. O ponto principal parece ser a cena que se formou em sua órbita, algo que não aconteceu por acaso. João era mesmo especial.
“João foi um dos maiores artistas da música popular no mundo. Da música popular brasileira, sem dúvida alguma, é um dos grandes mestres. Com a especificidade de que foi inventor de um estilo, que se perpetuou como um dos grandes estilos da música popular mundial, que é a bossa nova. Muita gente reproduz ou visita o estilo dele, e se beneficia do estilo dele pra avançar em outras invenções. É um grande mestre e um grande inventor. E teve parceiros importantíssimos, como Tom Jobim, por exemplo, sem as canções do qual é difícil de imaginar João podendo fazer o que fez com o violão”, comenta Gilberto Gil a Noize.
“Ao falar no João Gilberto parece que ele estava sozinho fazendo uma revolução, ele não estava sozinho. Vinha o Dorival Caymmi antes dele, o Tom Jobim e o Vinícius de Moraes, aí o Newton Mendonça, o Carlinho Lyra, esse pessoal. São gênios que estavam surgindo ali e viram no João uma porta de expressão muito profunda daquele movimento que eles estavam fazendo, que era muito rico em composição. E tudo mudou de lugar a partir daquele momento”, diz Moreno Veloso, músico, produtor, filho de Caetano e parceiro de Gil em diferentes projetos.
“Nem o Brasil nem o mundo seriam os mesmos se não tivesse esse movimento. Foi muito forte. Hoje a gente vive parecendo que aquilo é algo do passado. Não! Aquilo é uma coisa do chão que a gente pisa hoje. Foi uma modificação real. Não foi uma coisinha, foi uma explosão, um acontecimento. E o João era o porta-voz dessa turma, o porta-voz mais sensível e mais capaz de fazer tudo aquilo acontecer, inclusive de melhorar as composições do Tom Jobim, se é que isso era possível. Mas no violão e na voz do João isso era possível”, completa Moreno.
Gil não podia imaginar tudo o que aconteceria após ouvir “Chega de Saudade”. Naquela época, ele ainda estava terminando os estudos colegiais e nem tocava violão. Em 1952, aos dez anos de idade, ele havia começado a tocar acordeão, muito influenciado pela admiração que tinha pelo Gonzagão. “Eu já vinha tocando acordeão desde os dez, onze anos de idade. Eu tinha estudado um pouco, vinha tocando, e era apaixonado por Luiz Gonzaga, pela sanfona, por tudo aquilo”, lembra Gil.
O violão, por outro lado, parecia inalcançável. Havia um instrumento na sua casa, pois a sua irmã tocava, porém Gil via no objeto um enigma quiçá insolúvel. “E às vezes, quando eu me encontrava, me defrontava com o violão, pegava e plangia as cordas, eu achava aquilo tudo misterioso, quase indecifrável. Eu dizia: ‘Eu não sei o que fazer com um instrumento como esse'”, revela Gil.
No livro Tem Mais Samba – Das raízes à eletrônica (2003), Tárik de Souza narra os casos de Caetano Veloso, Edu Lobo e Chico Buarque, que, assim como Gil, lembram do impacto que tiveram ao ouvir João pela primeira vez. Essa experiência foi mais ou menos comum a toda uma geração de artistas que redefiniram seus parâmetros a respeito do que era a música brasileira a partir do experimento joãogilbertiano.
“Pessoas que conheço lembram a roupa, o lugar, se estavam sentadas ou em pé, quando ouviram o João cantar pela primeira vez, de tão impactante que foi. E não só no Brasil, pessoas dos Estados Unidos, da França, da Itália, eu tenho relatos assim. O Marcos Valle me disse que ouviu pela primeira vez o João em pessoa, tocando numa festa, e falou: ‘Meu Deus, eu vou ter que voltar pra casa e pegar o violão de novo, porque mudou a minha vida’. O João era uma força muito grande, de técnica e de refinamento, e ao mesmo tempo de inteligência, de velocidade, de rapidez artística e mental, de expansão espiritual. Uma coisa muito rara”, diz Moreno.
“Quando conheci o João, foi o sentimento do fascínio, do mistério, do encantamento e do alumbramento absolutos. Todas essas coisas de uma surpresa extraordinária. Foi uma alegria, porque ouvi ali uma coisa que era inédita. Nunca nada parecido tinha entrado pelos meus ouvidos e se abrigado no meu coração. Era uma coisa extraordinária, que só veio a se repetir quase com a mesma intensidade quando escutei, algum tempo depois, o Jorge Ben“, lembra Gil.
O baque da bossa bateu tão fundo que fez o menino tomar uma decisão: ele iria aprender a tocar violão. “Quando eu ouvi João, eu disse: ‘Eu agora tenho que enfrentar esse mistério do instrumento'”, diz Gil. “Ele inventou um modo de cantar, mas especialmente um modo de tocar que fez dele um artista de uma originalidade absoluta. É como se a gente imaginasse um Einstein da música. Ele inventou uma relatividade, uma nova teoria”.
O músico e produtor Bem Gil, que tem uma relação com seu pai ligada de modo umbilical ao seu estudo musical, comenta que aquele momento foi decisivo. “Meu pai não tinha uma ligação com o violão antes, a própria música popular brasileira não tinha. O que chamou atenção no meu pai foi o violão do João como protagonista. A coisa do violão arrebatou meu pai, tanto que ele largou completamente o acordeon e foi encarar o violão”.
Entre 1959 e 1961, João lançou três discos que se tornaram pilares da bossa nova: Chega de Saudade (1959), O Amor, O Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961). No mesmo período, Gil tocava em um conjunto chamado Os Desafinados, no qual ocupava o posto de acordeonista. Era uma banda informal, que se apresentava em festas de aniversário, clubes e colégios de Salvador. Nesses dois anos, Gil começou, em paralelo à sanfona, a tocar no violão de sua irmã. Mas em 1961, as cordas viraram prioridade.
“Minha mãe me deu um violão, e eu fui a uma loja de música e comprei dois métodos, um mais clássico e um mais moderno”, explica Gil. “Eu disse ao rapaz da loja: ‘Queria um método que pudesse me introduzir no mundo desse novo músico que apareceu agora no Brasil, o João Gilberto, no jeito que ele toca. Tem algum método de violão que contemple esse modo de tocar?’. E ele me disse: ‘Olha, eu tenho impressão de que, no método de um músico chamado Bandeirantes, você vai encontrar um pouco desse modo aí, dessas inversões harmônicas e etc., que caracterizam isso que esse pessoal chama de bossa nova agora’. E foi exatamente o que eu fiz”.
“Levei pra casa esses dois métodos, o do Garoto, que era um método mais clássico do moderno violão brasileiro, e o do Bandeirantes, que já era com os acordes cifrados, no estilo da bossa nova do João Gilberto. E aí eu fiquei em casa, naquilo ali e tal, — pra usar uma palavra da moda — macetando aquele violão, aquele macete, pra ver o que era aquilo. E com uma dificuldade enorme pra fazer alguma coisa que eu achasse realmente parecida com aquele modo de tocar do João”, diz.
Gil conta que os meandros da bossa seguiram lhe intrigando por um bom tempo: “Isso é bossa nova? É samba?”, perguntava-se. Foi só quando percebeu a raiz nordestina daquela música que Gil tornou-se capaz de adentrar de fato aos mistérios de João. A chave de acesso foi uma das poucas composições autorais lançadas por ele, a mântrica e zen “Bim Bom”.
“Em determinado momento, pensei no baião e ouvi ‘Bim Bom’, do João: ‘É só isso meu baião/ E não tem mais nada, não’. Fiquei com aquela coisa do baião na cabeça, e eu já tinha paixão por Gonzaga. Aí vi que o João na verdade sintetizava o samba e o baião. Tinha as duas coisas, porque ele também é nordestino. Ele era de Juazeiro, tinha sido muito impregnado pelo modo nordestino”, diz Gil.
“E com isso eu pude finalmente fazer alguma coisa que eu achei realmente parecida com o João. Pronto, dali em diante eu me dediquei a tocar aquele estilo de violão. Mais adiante, eu fui pegando outras coisas, fui me aproximando do meu próprio estilo de tocar, que tinha evidentes variações daquilo tudo. Mas foi assim, tocando e compreendendo o ‘Bim Bom’ que eu cheguei ao violão de João”, explica.
O reencontro
Depois da bossa, Gil conheceu — inclusive pessoalmente — músicos do porte de Jorge Ben, Jimi Hendrix, Miles Davis, Stevie Wonder, e tantos outros, que lhe marcaram profundamente. Ao longo de cinco décadas de carreira Gil também conquistou lugar de destaque na música global, sendo ele mesmo uma personalidade mundialmente conhecida pela inventividade com que elabora uma vastidão de influências, do reggae ao jazz, do samba ao punk, do afrobeat ao forró. Raríssimos artistas são capazes de lidar com musicalidades tão distintas enquanto ferramentas de sua própria expressão com tanta naturalidade.
De Lagos a Londres, de Kingston a Tóquio, Gil viu e ouviu o mundo e fez dele o seu som. Após algumas boas dezenas de álbuns autorais, a partir dos anos 2000, ele passou a se dedicar com mais afinco ao repertório de artistas que tiveram um papel de redefinição da sua musicalidade. Com isso, Gil riscou na lousa a sua própria equação, como um teorema expresso em um triângulo.
O primeiro ponto traçado foi na homenagem a Luiz Gonzaga, compositor de várias das faixas de As Canções de Eu Tu Eles (2000) e São João Vivo (2001) — anos mais tarde, sairia também a coletânea Gilberto Gil Canta Luiz Gonzaga (2012). No segundo, Gil foi até a Jamaica para gravar o repertório de Bob Marley. Daí, resultaram os discos Kaya N’Gan Daya (2002) e Kaya N’Gan Daya Ao Vivo (2003).
Depois do forró e do reggae, chegou a vez do samba, compondo a terceira ponta do triângulo. Este é o impulso inicial que culminaria em Gilbertos Samba (2014) e Gilbertos Samba Ao Vivo (2014). “Ele queria gravar um disco de samba, fazer uma discussão como a que ele tinha feito naquela estética do Luiz Gonzaga e do Bob Marley”, conta Bem Gil.
“São os gêneros que ele mais gosta, acho que a ordem é: samba, forró e reggae. O forró e o reggae já tinham rolado, o de forró homenageia o Gonzaga, o de reggae homenageia o Marley, e aí meu pai falou: ‘Meu filho, o disco de samba é uma homenagem ao João’. Ele já tinha essa ideia. É uma coisa que às vezes fica um pouco confusa, mas o próprio João falava: ‘Tudo o que eu faço é samba’. Às vezes se trata a bossa nova como se fosse uma evolução, mas o João cravava: é samba”, diz Bem.
Naquele momento, as músicas que João eternizou voltaram com muita força à mente de Gil. Depois de passar dos 70, ele foi se reencontrar com seu ícone adolescente. Moreno lembra do momento em que Gil lhe contou isso, dando uma amostra do que estava bolando.
“O Gil me falou: ‘Eu tô há anos só tocando o repertório do João no violão. Eu fico no quarto do hotel, em casa, na sala, no estúdio, na passagem de som, no camarim, o tempo todo só tocando essas músicas. Eu só tô com isso na cabeça. Acho que cheguei numa idade em que posso me dar o direito de ficar tocando isso de uma forma pessoal’. E eu ouvi aquilo falei: ‘Meu Deus do céu, que coisa mais incrível’. Aí passaram uns meses, e o Bem chegou pra mim e falou: ‘Ó, convenci meu pai de a gente fazer um disco com o repertório do João. Vamos produzir esse disco juntos?’. Aí começamos”, diz Moreno.
“Foi um processo muito joãogilbertiano, porque ele ficou uns dois anos maturando”, conta Bem Gil. “Todas as músicas nasceram, cresceram e apareceram através desse processo individualíssimo do meu pai com o repertório. Ele queria que eu e o Moreno produzíssemos, fez isso pra juntar a gente. Ele sabia que eu tinha o Moreno como uma grande referência, era uma escola para mim. E ele já tinha tido várias experiências de colaboração com Moreno. Aí pronto, a gente organizou e fez”, conta Bem.
“Pra fazer esse disco, essa homenagem ao João, eu separei mais ou menos um ano da minha vida pra me dedicar a ficar estudando aquilo, escolhendo algumas das canções do repertório dele e malhando mesmo. Tocando, me aproximando dos arranjos dele, e já concebendo meus próprios arranjos, adaptando minha forma de cantar também ao modo de canto dele”, lembra Gilberto Gil.
“Gil se sentiu, em um momento de madurez da sua trajetória artística, livre pra se aproximar abertamente do João, não só com admiração, mas com a força artística, com o seu próprio violão, que é um violão especial. Foi um impulso de proximidade, mais de colegas do que de um discípulo para um professor, do que de um garoto que admira um gênio. Mas aquele garoto que admira um gênio continua dentro do projeto, ele continua dentro do Gil”, aponta Moreno.
Conforme Bem, a proposta inicial de seu pai era a de que o álbum trouxesse uma banda maior com a qual ele poderia interagir com mais instrumentos. “A ideia dele para o disco era que aquilo fosse criado por uma banda, uma ideia meio Banda Nova [que acompanhava Tom Jobim], com talvez um piano, um outro violão… Ele pensava em uma construção um pouco maior”.
No entanto, Bem e Moreno sugeriram uma outra abordagem, celebrando a síntese minimalista de João. “Eu e o Moreno percebemos que talvez fosse outro o caminho. Meu pai ficou meio reticente, ele tinha essa expectativa de banda, que é o que ele mais gosta, tanto no estúdio quanto no palco. Só que a gente achou que aquilo era um lance que ele construiu e elaborou sozinho durante muito tempo, de forma muito pessoal. Não foi uma coisa: ‘Ah, faz voz e violão aí’. Não, ele passou dois anos organizando cada nota daqueles arranjos. Então a gente achou que esse era o lance principal”, diz Bem.
“O que o Gil estava propondo era revisitar esse repertório de uma maneira mais pessoal. E a maneira do Gil é atemporal, quando ele pega o violão pra tocar, não tem uma época definida, é contemporâneo. Estava acontecendo naquele momento, aquilo era novidade teórica e prática real. A partir desse impulso, a gente foi indo pra uma estética de gravação antiga, ao vivo. Sem tentar separar [os instrumentos] pra ajeitar coisinhas. Não ficar preso à edição minuciosa que hoje a gente tem capacidade de fazer nos computadores. Acabamos finalizando com o Domenico [Lancellotti], fazendo o papel do percussionista, e gravando a voz, o violão e a percussão ao mesmo tempo, em uma fita, à moda antiga”, explica Moreno.
O álbum botou uma lente de aumento na sofisticada escultura harmônica, melódica e rítmica que Gil desenvolveu revisitando o repertório de João. Ainda assim, a ideia era estabelecer diálogos com outros músicos, e um elenco de peso foi convidado para somar às bases de Gil e Domenico. Além dos produtores Bem (guitarra) e Moreno (prato e faca), o disco conta com Dori Caymmi (violão), Danilo Caymmi (flauta), Mestrinho (acordeon), Nicolas Krassik (violino), Rodrigo Amarante (arranjo e percussão), Pedro Sá (guitarra), Joana Queiroz (clarinete), Felipe Pinaud (flauta) e Bruno Di Lullo (baixo).
É interessante notar os atravessamentos no tempo x espaço que se desdobram em camadas se sentido sobrepostas no disco, por exemplo no caso da família Caymmi. Grande influência de João Gilberto, Dorival é o autor de duas músicas gravadas no disco de Gil — “Doralice” e “Milagre” — e é também o pai de Danilo e Dori, que já tinham se aproximado da família Gil de outras formas. Danilo teve muita proximidade com a Tono, a banda de Bem. “E o Dori foi um parceiro lá das antigas, quando meu pai estava começando. No primeiro disco do meu pai tem arranjos de Dori”, diz Bem.
A faixa em que Dori toca é justamente “Gilbertos”, a única música inédita que Gil compôs para o projeto e que de fato entrou no álbum. “No meio do caminho, Gil falou: ‘Compus uma música que quero colocar no disco, porque é uma grande homenagem, só que eu quero o Dori Caymmi pra tocar violão comigo. E a gente: ‘Caramba, o Dori mora em Los Angeles, sei lá, como é que a gente vai falar com ele? Será que ele vai topar?’. E aí foi, deu certo, eles gravaram e ficou linda. O repertório foi mudando naturalmente no decorrer da feitura do disco, mas o objeto eram as ideias do Gil de cabo a rabo”, diz Moreno.
“Minha composição já era resultante mesmo da bossa nova e do modo joãogilbertiano de tocar e cantar desde o início. Àquela altura eu já tinha um magnetismo profundo do modo joãogilbertiano, do qual eu já tinha me apropriado. Eu propriamente já era joãogilbertiano há algum tempo quando resolvi fazer esse disco”, comenta Gil. “E aí tem a coisa dos nomes, o Gilberto dele e o meu. Achei que poderia ser ‘João Gilberto Gil’, ‘Gilbertos’, ‘Os Gilbertos’, aí eu dei o título do disco de Gilbertos Samba. As duas canções especiais que eu fiz para esse disco são necessariamente resultado deste encantamento que eu sempre tive pelo modo joãogilbertiano de fazer samba”, completa.
Além de “Gilbertos”, Gil refere-se à letra que ele fez para o tema instrumental “Um Abraço no Bonfá”, de autoria de João Gilberto. Gil transformou o clássico instrumental bossanovista em canção, estabelecendo, ainda que à distância, uma parceria de composição com João. A música foi gravada, mas João não autorizou o lançamento na época. “O João não quis liberar a letra, não por causa do Gil, foi porque o Gil citou na letra coisas que o João não queria”, diz Moreno. Há expectativa de que a música seja lançada nos streamings em 2024, como parte das celebrações de dez anos de Gilbertos Samba (2014)
Em abril de 2014, o disco nasceu, motivando uma turnê, registrada no álbum Gilbertos Samba Ao Vivo (2014). Conforme os produtores, este foi um projeto complexo de levantar. “Na hora de transpor o disco pro palco foi um desafio. Meu pai nem queria fazer o show, tamanho já foi o desafio de gravar. Não era uma execução fácil. Tocar esse violão, cantar e chegar até o final ao vivo é um desafio maior ainda. Mas vamos lá”, conta Bem.
“Logo que o disco terminou, começou um novo trabalho, que era convencer o Gil a levar aquilo pro palco, porque ele estava relutante. Ele falou: ‘Poxa, mas é tão difícil tocar e cantar isso que eu acho que eu não vou conseguir fazer isso no palco todas as noites. Eu tô inseguro, vai dar muito trabalho’. E a gente, eu e Bem, ficamos: ‘Não, você vai conseguir, a gente vai montar um show que vai te abraçar e que vai te ajudar a mostrar essas músicas ao vivo’. A gente convenceu, e foi um dos shows mais lindos que eu já vi na vida”, diz Moreno.
Quanto ao resultado do álbum de estúdio, Bem revela que houve um estranhamento inicial de Gil, mas que se dissipou: “Tem aquela coisa, que é muito comum nos discos do meu pai, que é o fato de ele não ter gostado. Mas depois de um tempo ele gosta. Hoje em dia ele gosta”.
Já Moreno demorou pra ouvir o disco depois de pronto e lembra que essa foi uma experiência avassaladora. “Passou quase um ano até que eu realmente peguei o disco Gilbertos Samba (2014) e botei pra tocar. E eu fiquei emocionado, eu chorava sozinho, de alegria, de emoção. Eu não cabia dentro do meu peito ouvindo aquele disco”.
Quanto ao homenageado do álbum, há um tom de mistério que permanece no ar. “Eu cheguei a ir na portaria do João deixar um CD com a mixagem que tinha na época”, conta Bem Gil, que não foi recebido pelo músico. Quando o disco saiu, João tinha 82 anos, e Moreno diz que há poucos relatos sobre ele ter escutado, mas aparentemente ele gostou muito. “A gente sabe que ele ouviu, ficou quieto e não quis falar nada. Mas parece que ele ficou muito feliz. Eu espero que sim, né? Se for uma lenda, pelo menos é uma lenda que faz bem ao meu espírito”.