Em turnê com o álbum Boca Cheia De Frutas (2024), título do NRC+, João Bosco celebra 50 anos de carreira. A agenda começa pelo Brasil, com o próximo show em Natal, no dia 1/8. O músico ainda passa por Fortaleza (2/8), Salvador (15/8), Belo Horizonte (6/9), São Paulo (14/9) e Rio de Janeiro (28/9). Depois, tem início a tour internacional, com apresentações marcadas na Espanha, Holanda, França e Alemanha. Veja agenda aqui.
O cancioneiro de João pulsa ancestralidade. “O canto da Terra por um fio”, canção que deu a partida para o álbum Boca Cheia De Frutas (2024), brota de uma desolação, como anuncia o canto solitário do pássaro nos seus primeiros segundos. As madeiras do violão de João Bosco e do violoncelo de Jaques Morelenbaum ecoam a asfixia da terra por um fio, ou seja, da mata queimada, desmatada, do rio que seca. Para retratar esse cenário, essa dor, o músico e seu parceiro Francisco Bosco buscaram se deslocar na direção da perspectiva dos povos que testemunham a destruição e lutam contra ela há mais de 500 anos.
É yanomami o verso que abre a canção: “waruku waruku waruku këëi moramakī waruku waruku waruku këëi”. Da tradução dessas palavras que João tirou a expressão “boca cheia de frutas”, representação de abundância que dá título ao álbum. Ali, naquele ambiente de morte, elas soam como resistência. A letra da canção faz ainda referência a Omama, entidade yanomami criadora do mundo e de suas regras. E o sonho, plano de existência tão ou mais importante que o plano material para a cultura yanomami, é evocado logo no início.
A presença indígena e negra aparece em outros momentos de Boca Cheia De Frutas. “Dandara”, parceria de João com Roque Ferreira, canta a guerreira dos Palmares. Nos vocalises de sua introdução, o cantor insere a palavra “obi”, fruto sagrado usado em rituais de religiões afro-brasileiras. O samba “Dinossauros da Candelária” é uma celebração à ancestralidade negra que o gênero carrega, com referências a Clementina de Jesus, ao bloco Bafo da Onça, a Oxossi.
Há ainda “Buraco”, sobre o indígena conhecido entre antropólogos como “Índio do Buraco”. Ele viveu isolado em Rondônia, recusando-se ao contato até sua morte em 2022, quando foi encontrado num buraco, paramentado como se esperando o fim. Último sobrevivente de sua etnia, ele se mostra como metáfora do país: “Ao não se mostrar/ Mostrou o Brasil”. E no fim do disco, em “O cio da terra/ Boca cheia de frutas”, João retoma o cântico yanomami que aparece em “O canto da Terra por um fio”, mas agora num contexto de exuberância, terra fértil, colheita.
A presença indígena e negra no álbum não é uma exceção na carreira de João Bosco — esse mineiro de Ponte Nova, com juventude vivida em Ouro Preto antes de ele se mudar para o Rio para firmar sua carreira de cantor e compositor. Classificado indubitavelmente como branco na régua racial brasileira, filho de pai libanês, o artista desde sempre, em sua música, bebeu das tradições dos povos oprimidos na história brasileira. De seu violão ao seu canto, passando pelos versos muitas vezes escritos pelo parceiro Aldir Blanc, há dezenas de exemplos em sua discografia.
Já em seu primeiro álbum, de 1973, a canção “Quilombo” narra a dinâmica de exploração e revolta de negros escravizados, sob um arranjo tenso e num pretuguês seminal. Na faixa título do disco Tiro de Misericórdia (1977), orixás lutam ao lado do menino dono do morro numa batalha sangrenta.
Em “João do Pulo”, homenagem ao atleta do salto triplo recordista mundial e medalhista olímpico, a letra descreve o personagem como um herói carregando em si a miscigenação que traz a marca da opressão: “João de sangue afro-tupi”. Regravada na década passada, a canção apareceu pela primeira vez no álbum Cabeça de Nego (1978), todo ele uma celebração da negritude — sua faixa-título chama Aniceto, Donga, Sinhô, João da Baiana, Pixinguinha e novamente Clementina, em meio a vocábulos que manifestam a embocadura da herança africana na cultura e na identidade brasileira.
A pouco conhecida “Senhoras do Amazonas”, do álbum Gagabirô (1984), menciona cunhãs, curumins e muiraquitãs na construção de sua poética baseada em chão indígena. Já “Tambores”, do mesmo disco, rima yorubá com chá-chá-chá e cria a palavra “Africaribe” pra designar a conexão entre África e América a partir da herança negra.
Em 2017, no álbum Mano Que Zuera, o mesmo em que retoma a saga de sangue afro-tupi de “João do Pulo” numa gravação pungente, João lamenta em “Nenhum futuro” a natureza destrutiva que se manifesta na história do Brasil. O apocalipse se revela pelo olhar indígena: “Guaranis alcoolizados/ Seu nenhum futuro/ Anuncia o despencar do céu/ Sobre nós”.
Em canções como as citadas aqui, ou de maneira mais marcada em álbuns inteiros como “Cabeça de nego”, “Gagabirô” e “Benguelê” (com a trilha sonora criada por João para o espetáculo homônimo do Grupo Corpo), transparece a vinculação do artista com a perspectiva negra e indígena. Não como mero adorno estético ou efeito de apelo político fácil, mas sim como manifestação intrínseca de sua identidade como brasileiro que vê o país a partir de sua essência mais funda. Uma essência que testemunha beleza e violência, dor e força criativa, o sonho e a queda do céu.