O rap nacional tem ganhado novos contornos e possibilidades para se provar cada vez mais brasileiro. O estilo, que chegou por aqui em meados dos anos 80 como obra importada para traduzir ritmo e poesia para a cultura de periferia, precisou caminhar anos para desenvolver uma identidade própria.
Black Alien já dizia: “Os MCs brasileiros copiavam o flow dos gringos e traduziam as letras como se eles tivessem composto”. Desde então, o processo de trazer um significado nacional que vá além da lírica é contínuo, e vai buscar a referência nos samples, nas experimentações, nas nossas percussões e timbres, no cotidiano do sul global e em muito mais.
Alguns personagens vêm desenhando o futuro partindo do princípio do que a música brasileira pode trazer novas experiências para o hip-hop. Um deles é Joca. Seis anos após a estreia com A Salvação é Pelo Risco (2019), ele se vê inspirado para um retorno brilhante em Cortavento (2025). O disco vai do resgate aos tambores e influências da religiosidade até o sopro-jazzístico brasileiro, entre batidas que transbordam as bases tradicionais do hip-hop e usos autênticos de influências estrangeiras, como o garage e amapiano.
Desde que o artista, nascido no interior de Minas Gerais e criado em Niterói, passou pelos riscos de se lançar na vida da música, transitou por momentos desafiadores que se refletem no longo período entre os dois projetos que espelham sua arte.
Neste projeto, Joca se dedicou a um processo mais profundo de pesquisa, criação e escuta. “Esse hiato, pra mim, foi sobre me consolidar como pessoa, artista e profissional”, conta. O tempo entre os dois discos foi preenchido por investigações artísticas e um mergulho nas próprias referências. “Mesmo com uma demanda do mercado por um novo disco, eu já estava vivendo de arte, vivendo do Joca – e vivendo experiências que me formaram artisticamente”, define. “Foram os primeiros dois anos da minha vida em que consegui, de fato, relaxar. Não precisei fazer jornada dupla entre música e trampo formal.”
A repercussão do disco de estreia serviu como um termômetro – e como impulso para se aprofundar na própria identidade. O que nasceu desse amadurecimento é um álbum que Joca descreve como um “mapa aberto. Um diário de bordo.”
Confira nosso bate-papo com o artista.
Por que seis anos separam sua estreia do seu segundo álbum?
Acho que eles vieram por diferentes motivos, mas todos apontando para o mesmo lugar: o meu desenvolvimento. Como pesquisador, produtor, MC… e como ser humano mesmo, como adulto.
Foi um processo de muito aprendizado. Dá pra dividir em fases. Logo depois do lançamento de A Salvação É Pelo Risco, veio a pandemia. E foram os primeiros dois anos da minha vida em que consegui, de fato, relaxar. Não precisei fazer jornada dupla entre música e trampo formal.
Tive quatro meses de trabalho presencial antes da pandemia, e isso me deu uma base para manter alguma estabilidade e focar só na música. Fiquei muito atento à repercussão do álbum, e aquilo me surpreendeu demais. Porque A Salvação eram as minhas oito músicas, sabe? Eu vinha de outro processo: estudando música desde criança, produzindo desde a adolescência, mas quase sempre de forma coletiva, quase nunca cantando. Foi só um pouco antes da Salvação que eu começo a cantar – ainda em grupo, fazendo colaborações, compondo…
A repercussão inesperada mostrou que eu ainda precisava me entender artisticamente, saber quais eram minhas vontades, o que eu queria comunicar, de que forma meu trampo contribuía com a trajetória das pessoas. Esse primeiro álbum foi meu termômetro.
E acho que, graças a todas as pessoas que estavam comigo, conseguimos apresentar o disco de forma muito sólida. Isso aumentou minha responsabilidade para o segundo álbum. Então, foi um momento intenso: colher frutos, descansar um pouco, voltar meu foco só pra música… e aí mergulhar numa investigação mais profunda.
O embrião de Cortavento já existe ali, em 2020. Tem até um vídeo meu falando que estou começando as pesquisas. Em 2022, já tinha uma demanda de shows mais intensa, um público mais consolidado, a gente estava voltando da pandemia. Fiz uma turnê, rodei parte do Brasil com a minha música. Não fui a todas as regiões, mas consegui viajar através do som.
Nesse processo, fui entendendo o que queria entregar no palco, como queria tocar minhas músicas, como era tocar com banda… e como o público reagia. Isso tudo influenciou o álbum.
Nesse meio tempo, trabalhei com várias coisas dentro da música: colaborei como compositor em projetos de outros artistas, dirigi trilhas sonoras, fiz residência artística no MAM do Rio envolvendo música e animação, até atuei em algumas paradas.
Mesmo com uma demanda do mercado por um novo disco, eu já estava vivendo de arte, vivendo do Joca – e vivendo experiências que me formaram artisticamente. Fiz trilha sonora pra um desfile no São Paulo Fashion Week, por exemplo, com uma estilista cabo-verdiana que me apresentou o amapiano, funaná, princezito… coisas que me conectaram com Cabo Verde, e por consequência, comigo mesmo.
Então, já estando nesse momento de viver do que faço, entendi que era importante viver essas experiências antes de entregar o segundo disco. Sinto que, sem isso, eu poderia ter sido redundante narrativamente.
Esse hiato, pra mim, foi sobre me consolidar como pessoa, artista e profissional.
E esse mergulho em diferentes sonoridades foi essencial pra identidade do novo disco, trouxe muita originalidade. E não sou só eu que penso isso: o Don L também falou algo parecido numa entrevista comigo. Queria que você contasse como nasce essa conexão entre vocês dois.
Além disso, tem o trabalho dele como diretor musical, como produtor… aquela mistura de linguagens. Fortaleza e o Norte e Nordeste do Brasil dialogam com o Caribe, com a cultura indígena, de uma forma muito viva – algo que no Sudeste, às vezes, vira estereótipo, quase folclore, né?
Me lembro do Costa a Costa ampliando meus horizontes com música cubana, com referências jamaicanas. Isso me inspirou num momento em que eu tava no conservatório estudando percussão, entendendo produção, sample… Foi quando comecei a pensar a música de um jeito mais abrangente.
Don L: “Não quis batida gringa no meu disco”
Então, desde cedo, vejo o Don L como esse cara que assume o risco. O risco de buscar se entender, se expressar a partir da individualidade e, com isso, gerar um senso coletivo. E tudo isso sem romantizar.
Um dia, o Danilo, do Oganpazan – que é um gênio na forma de comunicar e ver música – marcou ele e falou: “Aí, mano, escuta o som do moleque, que é bala”. E ele realmente ouviu. Gostou. Me mandou um salve, falou sobre consistência, sobre seguir.
A gente começou a trocar ideia. Não de forma muito próxima, porque nem ele nem eu somos muito de ficar online o tempo todo. Mas sempre houve admiração mútua.
E quando nos encontramos pessoalmente, logo nas primeiras trocas já estávamos falando sobre setup de estúdio, pesquisa, equipamento… A identificação foi sincera. São trocas pessoais, mas que se desdobram de várias formas – isso é a força da música também.
Você sai do eixo do hip-hop, flerta com música eletrônica, house, religiosidade. O que é a musicalidade de Cortavento pra você?
É um mapa aberto. Um diário de bordo. Cortavento é um registro muito imagético dos lugares que consegui acessar ao longo da vida por meio da música.
Aprender com pessoas de contextos diferentes, sobre formas de traduzir musicalidade no corpo… isso foi muito marcante. O disco expande meu vocabulário percussivo em relação ao Salvação. Senti falta disso no primeiro – se eu soubesse que era possível, teria trazido mais.
Mas ali, no Cortavento, eu começo a entender a relação das pessoas com a música vendo o corpo delas em movimento. E aí eu reafirmo algo que já é sabido, mas que vivi mais de perto: a importância da frequência grave na formação cultural e na história da música brasileira.
Os tambores graves – seja nos rituais de matriz africana, seja nas manifestações culturais de rua, como o samba, o coco de umbigada, o maracatu, o jongo – eles guiam o movimento. São, muitas vezes, o que muda o sentido das coisas. Quando vou a um paredão, conheço um sound system, vejo o maracatu acontecer de fato em Recife… eu percebo que essa frequência grave permanece presente na preservação das culturas periféricas e dissidentes do Brasil.
Os paredões do baile funk, do brega funk, o tecnobrega, as radiolas do Maranhão, os paredões de Salvador… todos reafirmam, pelo grave, o quanto a música é essencial pra sobrevivência dessas comunidades. Letras que falam de guerra, amor, lazer – tudo atravessado pelo grave. E cada camada desse som ajuda essas pessoas a viverem melhor, mesmo.
Tem uma frase que diz: “Num lugar onde não há atividades culturais, a violência vira espetáculo.” E eu acredito muito nisso. Do mesmo jeito que escuto um surdo, um rum, uma alfaia, eu passo a escutar também a importância de um paredão. Escuto o baixo do reggae, escuto o tambozão. E aí isso vai se desdobrando em outros batuques – na música eletrônica, por exemplo – que vêm de outros cantos e se somam ao nosso cenário.
No fim, não precisa andar muito pra perceber como o funk carioca, o miami bass, o maculelê, o toque congo… todos esses sons se encontram. E quando você percebe quantas outras dezenas de toques, de claves vêm daí, você entende que tá tudo até no nosso ritmo de fala. Na nossa forma de contar história.
E falando em música eletrônica, o que você faz também é um posicionamento. Você se coloca dentro dessa cena: afirma que a música eletrônica também é periférica. Se junta a artistas como a Ebony – que também vem experimentando vários beats eletrônicos, como em KM2. A Duquesa também tá nesse corre, não ficando só no trap… São artistas que estão resgatando estilos que por muito tempo foram elitizados. Queria te ouvir sobre esse mergulho eletrônico dentro do hip-hop.
Com certeza. Sinto que a gente vive um momento de florescimento na cena do rap e do hip-hop. É a primeira vez que lidamos com grandes públicos, grandes números. E isso abre espaço pra experimentação de várias linguagens.
Acho potente essa retomada da música eletrônica como música preta, tá ligado? E isso tá vindo de vários polos diferentes. Fico até em dúvida se há 15 anos a gente teria encruzilhadas tão vivas como as de hoje.
Hoje, você tem a cultura ballroom, o grime, o sound system, o house, o techno… tudo isso dialogando. São vertentes diferentes, que vêm de lugares diferentes, mas que estão atravessando essas discussões. E tudo isso vai alimentando o vocabulário e o repertório dos artistas da nossa geração. Vai criando mais identidade, mais profundidade.
E quando você percebe que todas essas linguagens têm em comum o fato de serem eletrônicas – e de serem formas de expressão pra milhares de pessoas – você entende que isso é revolucionário. A pergunta vira: beleza, como a gente se alinha pra chegar junto, com peso?
Aí eu busco essas colaborações com esse olhar. Quero registrar no meu projeto a contribuição dessas pessoas. A Amanda Sarmento, por exemplo, que já vinha fazendo um trabalho muito foda com drill, grime, e que eu já tinha ouvido fazendo R&B também… é uma artista com uma mistura de referências muito intensa. A Ebony, mesma coisa – cabeça muito nerd, mas, ao mesmo tempo, muito cria.
Entrevista: Ebony alega que o rap é pop
E todas as participações no disco estão ali porque eu entendo que elas colaboram pra construção de uma cena sólida. Uma cena fora da lógica de reprodução que o mercado tenta impor pra gente. Porque existe essa pressão por uma produção em larga escala, com segurança, com fórmula.
E o hip-hop, o funk, a música eletrônica periférica que a gente tá falando aqui… tudo isso vem pra bagunçar. Pra provocar. São artistas que tensionam esse lugar do estabelecido. Que criam a partir do desconforto.
E eu gosto muito disso. Gosto do incômodo. Gosto da dúvida. Gosto quando a gente bagunça o que já tava dado.
Suas letras falam de fé, cultivo, orgulho, quedas, relações… O que essas letras representam pra você, agora que o disco tá no mundo?
Essa variedade de temas é reflexo da diversidade de sons que tem no disco. Eu quero validar o rap como esse lugar aberto – que pode experimentar ritmos, falar de diferentes assuntos, tensionar a realidade, criar ficção, expor contradições.
Quero incentivar quem me escuta a também não se limitar. O processo de se entender é difícil. É cheio de contradições. E isso precisa estar presente na arte. Senão, tô só repetindo fórmula, entregando algo pasteurizado – e não é isso que quero.
E qual é o recado Cortavento deixa pro Joca?
[Pausa] Acho que: Acorda. Se movimenta. Age. Se Cortavento falasse, seria direto. Impositivo, até. Porque todas essas letras, esses sons, esses encontros… eles chegaram até mim como mensagens. E agora, com o disco no mundo, o que ele me diz é: vai.
Anda. Corre. Fala. Voa. E, acima de tudo, fica atento.