Letícia Fialho quer aprender a voar. Com Revoada Baile Canção (2025), ela consegue. O segundo álbum da brasiliense nasceu por conta de uma guitarra. “Meu amigo estava vendendo uma guitarra brasileira de 1968. Fui testar, pelo menos para sentir esse som. Quando comecei a tocar, já nasceu a sonoridade do álbum, que estou chamando de baile-canção“, explica ela.
Para criar essa sonoridade, ela bebeu de uma série de referências dos anos 80, como Realce (1979) álbum de Gilberto Gil e Lilás (1984), de Djavan. “É um som muito brasileiro”, diz a cantora. No baile-canção de Letícia “sempre é carnaval”, como canta na faixa “Eu e o tempo”, não pelo samba, mas pela energia de festa e celebração, presente em todo o disco.
Nos feats, participam Tuyo, Ju Strassacapa, Ellen Oléria, Luiza Brina e Mestre Anderson Miguel, em parcerias afetivas. Outro grande homenageado da produção é Oxóssi, orixá da fartura. Por isso, quando peço para Letícia definir o álbum em três palavras, ela não hesita na escolha: “Travessia, fartura e festa”.
Letícia usou os sete anos que separam Maravilha Marginal (2018), seu álbum de estreia, a Revoada Baile Canção (2025) para se tornar uma “operária melhor da música”, como define ela mesma. “Quero fincar minha bandeira como compositora popular brasileira”, diz.
A graça da produção está em conseguir bater as asas, mas “manter os pés no chão” ao tratar dos assuntos mais terrenos, mas com muita sensibilidade. As flautas de Thanise Silva, maior parceira de Letícia na produção, percorrem todas as faixas, e elas não estão aí por acaso, elas surgem para dar o tom, como as asas de pássaro batendo, em revoada.
A Noize conversou com Letícia sobre o processo criativo de Revoada Baile Canção (2025), produzido por ela mesma, JP Mansur, Thanise Silva e Mateo Piracés-Ugarte, do Francisco, El Hombre. Confira detalhes da produção e leia (e ouça) o faixa a faixa exclusivo abaixo:
Sete anos separam Maravilha Marginal a Revoada Baile Canção. O que mudou de uma Letícia para a outra?
Muita coisa. O Maravilha Marginal (2018) é um álbum gravado de forma independente, com fomento do DF, que fura nossa bolha do território e passa a ser escutado no Brasil, lá fora, com desdobramentos na música eletrônica, enfim. Coisas incríveis que vieram do disco que gravamos naquela luta, a partir daí, projeta o meu trabalho para fora. Aprendi muito sobre o mercado fonográfico, a estrada, shows, encontros mil e tudo que tive de aprender para fazer esse trabalho seguir.
Lancei EP’s experimentais nesse meio tempo, como Purpurina Anzol (2019), que é voz, violão e sanfona, com um sanfoneiro de Brasília, o Rodrigo Zolet. Tem o Carta de Fogo (2021), gravado na pandemia, que eu toquei todos os instrumentos e O Que Restou da Maravilha (2023), com Murica, meu amigo do rap. Nesse tempo, eu fui experimentar coisas e tocar. Aprendi muito sobre música.
Não só sobre a parte técnica, mas sobre a força que a música tem. Quando ia tocar em um lugar que eu nunca tinha pisado, e pisava ali por causa da música, e vinha alguém chorando, falando “sua música me salvou”, só o que eu conhecia sentir é: eu não tenho esse poder.
Eu não conheço essa pessoa, ela nem me conhece, não sei o que ela passou, mas a música tem esse poder, me dava cada vez mais desejo de ser uma operária melhor [risos]. A música, no fim das contas, é maior que todos nós, ela entrega o serviço necessário para o mundo, que cura as pessoas. Esse foi meu maior aprendizado.
Como foi o processo criativo de Revoada Baile Canção?
Desde que fiz a música “Revoada”, e percebi que ali tinha um material legal, que eu adorava o “baile canção”, que é como estou chamando, que é o timbre eletrônico na música brasileira, muito comum nos anos 80 e 90, como Realce, do Gilberto Gil; Lilás, do Djavan e Lindo Lago do Amor, do Gonzaguinha, também Marina Lima e Guilherme Arantes. Eu adoro esse som.
Quando eu canto: “Chegou a hora da Revoada”, é isso que eu quero dizer. Logo no começo, decidi chamar a Thanise, para gravar as flautas no disco inteiro, as flautas são a revoada. A partir daí, fui construindo, veio timbre eletrônico, synth e mais.
Depois que desenhei a sonoridade, abri o baú, pensando: “quais músicas que eu tinha que se ligavam tanto com a sonoridade quanto com a mensagem do álbum?” E foi se desenrolando naturalmente.
O que você quer que as pessoas sintam escutando o álbum?
Esperança. Não é a esperança negacionista, sabe? Que não considera as dores, dificuldades e injustiças sociais, pelo contrário, é por isso mesmo que vamos dançar, cantar e nos fortalecer. Esse é um legado de tecnologia ancestral de sobrevivência.
O que temos como cultura negra viva no Brasil, que são pilares da cultura brasileira, chegaram até aqui pelo canto e pela dança. É essa esperança que olha para as dores e injustiças e fala: beleza, eu vou me fortalecer pela alegria e vou atravessar.
Confira Revoada Baile Canção faixa a faixa:
“Flecha (Para Abrir e Bendizer)”: essa faixa é uma síntese do álbum. Thanise Silva, flautista e diretora musical do disco, junto comigo, costurou frases musicais de todas as músicas e compôs uma vinheta, aí eu, também querendo jogar junto, costurei, em texto, frases de todas as letras. Essa é a abertura. O “Para abrir e bendizer” porque traz a abertura e o que estava trazendo nesse disco, palavras de fé e alegria.
“Revoada”: faixa que dá nome ao disco e que puxa essa onda toda. Fui pensando e construindo uma travessia, o caminho da música, que passa pela ilusão e chega na mesa farta, tem elementos de toda travessia humana: dificuldades, ilusões, destino, sagrado.
“Revoada” vem com esse tom esperançoso, que compreende as dificuldades, e que reivindica a alegria e também reverencia o Oxóssi, que traz essa ideia de fartura. “Revoada” dá o tom do disco inteiro. É um feat com a Tuyo, que é uma passarada, os vocais da Tuyo são muito bonitos, profundos e emocionantes.
“Presente”: fiz com 18 anos, para o aniversário de alguém. Queria desejar coisas boas, por isso que ela vem com esse refrão “Força, fé, saúde, alegria, um milhão de risos por dia”. São coisas legais para desejar e quis trazer esse tom para o disco. “Presente” também traz um maracatu baile. Trouxe a Ju Strassacapa para cantar, uma artista que tem um trajetória muito bonita com Francisco El Hombre, e agora também solo. Pra mim, é uma das vozes vivas mais potentes da música brasileira. Ela tem um calibre absurdo. Vir com essa voz desejando tantas coisas boas é uma benção.
“Pra sempre por enquanto”: fiz com 15 anos, mais uma vez reforça a ideia de trajetória e travessia que o álbum traz, são faixas que compus em diferentes idades. Nessa, mudei uma frase ou outra, mas o todo está aí, ela é dançante e carrega o baile brasileiro.
“Eu e o tempo”: também é dessa leva de adolescente, com uns 16 anos. É uma música super profunda, densa, que fala sobre os movimentos do tempo, respeitar o tempo, a vida tem essa dinâmica, de sim e de não, o tempo costura nossos dias. É uma faixa profunda, mas trouxemos para a pista essa reflexão.
“Pedaço”: é um xote modernoso. Fiz a composição com 20 e poucos anos, esse xote está no EP Purpurina Anzol, que é só voz, violão e sanfona, é uma música super querida, com refrão legal e gostoso. Sabia que essa no baile ia ser especial.
“A Girar”: essa música fiz questão de não ter beat, ser guitarra, voz e as flautas, para deixar minha bandeira como compositora fincada. Tem o baile todo rolando, mas, nessa faixa, eu finco a bandeira que sou uma compositora de canção brasileira, dessa canção que vem do violão. Tem uma letra super densa, mas também de fé, acreditar e andar, sonhar e atrapalhar a ordem lúcida-sensata amando. Compus com 16 anos.
“Chegada”: parceria com Igor Trindade, sambista carioca e amigo de infância da família. No Facebook, ele postou o texto, que é o refrão da música, e estava com a música até a metade quando vi a publicação e falei: “É isso que preciso para terminar a música”, pedi para o Igor e ele deixou, virou esse ijexá, que tem essa coisa encantada do carnaval.
Com essa atmosfera, fiquei com muita vontade de chamar o mestre Anderson Miguel. É um artista que eu admiro muito, que me emociona. É um cirandeiro jovem, de Nazaré da Mata, que conheci em Brasília. Quando mandei a música, ele falou: “Essa aí tinha que ser comigo”.
“Sol, chão, lua e estrela”: parceria com Luiz Gabriel, compositor mineiro do Graveola e Rosa Neon, amigo querido, estava com a música, de melodia, mas não tinha letra. Mandei pra ele, e, logo, me retornou com a letra falando: “Amiga, fiz aqui no ônibus” e a música fala muito sobre isso, é uma música estradeira, que fala muito sobre a trajetória de artistas, de pegar a estrada.
Principalmente também nós, artistas do Brasil Central, que, inevitavelmente, teremos que migrar para o eixo Rio-São Paulo. Eu sou do DF, o Luiz é de Minas e eu convidei duas artistas de Minas, Ellen Oléria que é uma grande professora, fui em diversos shows, é uma luz na minha vida. E também Luiza Brina, essa gênia da música brasileira, com aquele violão incrível. No fim das contas, são três autoras do Brasil Central cantando sobre a estrada.
“Tudo de bom”: é uma música composta pelo meu pai, Gilmar Ribeiro. Nos anos 80, meu pai tinha um grupo de música e eu lembro deles tocarem essa música. Quando, adolescente, consegui tirar essa no violão e me emocionei. É uma letra do meu pai desejando coisas boas. Em um disco desse que evoca esperança e alegria, que mostra que temos direito a festejar, nada melhor do que encerrar com essa benção de um mais velho meu que deseja tudo de bom para quem escuta.