Luíza Boê apresenta Sonhos (2025), seu terceiro álbum. Lançado em outubro, o disco da capixaba nasce da sua conexão com a espiritualidade, da imaginação e do devaneio. Quase um realismo fantástico, em que cada uma das 13 faixas surge como ponte entre a natureza e um universo onírico.
No trabalho, Luíza divide a produção com Charles Tixier, Fábio Carvalho, Fernando Catatau, Gustavo Ruiz, Lucas Martins, Marcelo Jeneci e Pedro Carboni. Nas participações, Joaquim (em “Meu Limbo”) e Jaques Morelenbaum (em “Meu Mar”), Jeneci também aparece na faixa “Saudade Não Envelhece”.
Com esse time, é fácil perceber que Sonhos passeia por diferentes universos. Do próprio dreampop, com toques nostálgicos, mas também com muita brasilidade, trazendo referências a ritmos ancestrais, sem esquecer da veia dançante, Luiza apresenta um retrato da nova MPB, cheia de experimentações sonoras.
O disco foi idealizado após a mudança da capixaba para a capital paulista, para se dedicar ao estudo musical. Como resultado, é o primeiro trabalho em que a própria cantora assina os arranjos. “É um álbum sobre o amor pela vida, existência e a coragem de ser feliz. A vida, em sua simplicidade, já é boa como é, a busca pelo extraordinário pode nos cegar para a poesia que habita os dias comuns”, comenta a artista.
Confira Sonhos faixa a faixa:
“Nada Extraordinário”: celebro a beleza sutil do cotidiano. A canção nasceu da percepção de que a feliz busca pelo extraordinário pode nos cegar para a poesia que habita os dias comuns. Com um refrão mantra de contentamento, “nada extraordinário hoje”, a faixa convida o ouvinte a encontrar a beleza no ordinário. Produzida por Gustavo Ruiz, que captou perfeitamente sua essência melancólica e serena, a música ganhou arranjos que superaram a imaginação inicial, se tornando um lembrete musicalmente delicado de que a vida, em sua simplicidade, já é boa como é.
“Saudade Não Envelhece”: numa ambiência de sanfona e synth bass, trago uma canção-canal, nascida da dor que moldou minha vida, a partida do pai quando tinha 11 anos. A música irrompeu completa em um momento de profunda conexão espiritual, como um amparo para as perguntas não feitas e as palavras não ditas de uma criança. Mais do que uma composição, é um testemunho de que a saudade não se supera, mas se habita, uma sabedoria que se instala no corpo e no tempo. Com uma amorosidade que acolhe a própria dor, a faixa se torna um abraço sonoro para que todos possam dedicar às suas próprias e grandes saudades.
“Estrelas”: vem como uma canção sobre o amor em sua forma mais humana e corajosa. A faixa simboliza a ponte entre o disco anterior, Amanheci (2021), e essa nova fase da artista, explorando o mistério dos relacionamentos e o ato de se vulnerabilizar diante da intimidade. Reflito sobre o desaprender de antigos padrões e o mergulho no amor como prática e escolha, um convite para viver o afeto de forma consciente, livre e transformadora.
“Tsunami”: é uma música sobre um coração partido e também é faixa-foco do disco. É uma faixa representativa, que explora essa experiência com imagens poéticas e visuais, como a de uma onda gigante rompendo muralhas invisíveis erguidas para se proteger de sentimentos e memórias. Inspirada tanto em relatos de outras pessoas quanto em experiências pessoais de saudade e afastamento, a música transmite a intensidade do desejo de conexão e da força emocional necessária para romper barreiras afetivas. Produzida por Catatau, a faixa preserva uma crueza deliberada na gravação de voz e violão, complementada por arranjos de quarteto de cordas assinados por Pedro e executados por William e Stephanie Doyle, criando uma sonoridade intensa, delicada e carregada de magia, que traduz a emoção e a profundidade do momento vivido.
“Limbo”: marca um momento singular na trajetória da cantora, é a primeira música não autoral de seu repertório gravado. A composição de Luca Frazão, meu professor de violão, me conquistou de imediato, mas o destino reservava uma surpresa. Quando os recursos se esgotaram, o universo musical respondeu através de um story do cantor Joaquim, cuja interpretação ao piano foi tão comovente que selou uma parceria natural. Gravada por último, mas com a sincronia de quem completa um ciclo, a faixa emerge como uma das jóias mais preciosas do álbum – onde a verdade da narrativa se entrelaça com a entrega visceral de dois artistas que transformaram o acaso em poesia.
“Meu Mar”: é uma poderosa ode ao recomeço que convida o ouvinte a entregar suas dores e lutos às marés. Trago uma narrativa sonora sobre a importância de atravessar a tristeza com integridade, mas também sobre o momento crucial de liberá-la. Curiosamente, esta canção encontra sua gênese em “Tsunami”, que, composta posteriormente, revelou-se a origem prévia desta história. Enquanto “Tsunami” representa a força arrasadora da dor, “Meu Mar” é o fechamento do ciclo, o instante transcendente em que se decide seguir em frente, banhado pelas águas purificadoras do renascimento.
“Ouvi Num Sonho (O Tempo)”: se materializa como uma dádiva direta do inconsciente, capturada em um estado liminar entre o repouso e a criação. A canção nasceu completa em um sonho vívido onde a artista, ao discutir sobre crescimento pessoal com uma amiga, recebeu a revelação musical através de uma aparição de Julia Mestre no alto da Pedra da Gávea, tocando um tambor, cantando “Tem gente que não quer crescer // Que tem medo do que pode encontrar // E assim se esquece das suas forças // E não chega onde que tem que chegar”. Com alquimia percussiva de Igor Caracas, que extraiu sons poéticos de uma caixa de fósforos, um piso com uma vassourinha, e um tambor grave, a faixa preserva a pureza de sua mensagem onírica. É um lembrete sutil sobre as forças que descobrimos quando ousamos crescer.
“Balanço na Lua”: reflete o amor em sua forma mais ampla, o amor pela vida, pela existência e pela coragem de ser feliz. A canção nasceu de uma compreensão profunda sobre o medo de se abrir para o afeto e para a própria felicidade. Produzida por Lucas Martins, que também assina todos os instrumentos, a faixa apresenta uma sonoridade que envolve, com ritmo e leveza, que traduz a entrega ao amor divino que inspira sua criação.
“Moqueca Capixaba / Congo para São Benedito”: celebro a cultura do Espírito Santo em formato de receita. Inspirada por canções que ensinam a fazer tais preparos, detalho o preparo da moqueca, destacando as heranças indígenas da prato, como o uso da panela de barro e do urucum. A canção ganha o ritmo do Congo, manifestação cultural capixaba, com a colaboração do percussionista Fábio Carvalho, que incorpora instrumentos tradicionais e uma toada para São Benedito, o santo padroeiro dos cozinheiros e da festividade do Espírito Santo. A proposta é que, ao aprender a cantar, você aprenda a fazer a autêntica moqueca capixaba em casa.
“Meu Grande Amor”: é uma faixa dançante e pop, que celebra o amor próprio como base de todos os relacionamentos. Também inspirada em um sonho, a música reforça a ideia de que o maior amor é o que sentimos por nós mesmos, e que quem chega em nossas vidas deve se somar a esse amor. A faixa combina ritmos e convida a celebrar a própria existência.
“Tu Sol”: é uma faixa apaixonada, inspirada no meu companheiro Pedro. A música reflete a segurança, o afeto e a aceitação que transforma dores e antigos padrões em leveza e tranquilidade. A canção transmite a sensação de acolhimento, iluminada pelo amor, convidando a vivenciar essa experiência de calor, proteção e conexão emocional.
“Sonhar Floresta”: é minha canção mais política, inspirada na minha experiência anterior com o trabalho na área de direitos humanos e da inspiração em autores indígenas e quilombolas. A letra aborda a ideia central de que é preciso “sonhar a floresta”, ou seja, ampliar nossa consciência para além do indivíduo e enxergar o planeta como um todo, para evitar um colapso ambiental. Para aumentar a força desta mensagem, a canção conta com a participação do Coral Guarani Tape Retxakã, que gravou seus vocais em guarani dentro da casa de rezo da aldeia, tornando a música um sonho coletivo e urgente pela preservação da floresta.
“Manhã”: surge como o epílogo perfeito para a jornada do álbum, nascida de um momento espontâneo de criação onde harmonia, melodia e letra se entrelaçaram num só suspiro. A canção representa a doce preguiça de um amanhecer compartilhado, a intimidade minimalista de dois corpos que desejam apenas existir em sintonia enquanto o mundo passa. Se o disco é um grande sonho, “Manhã” representa o despertar na realidade mais preciosa, a de viver, consciente e plenamente, ao lado de quem se ama.