O Espírito Santo não costuma figurar na rota de grandes shows ou festivais, ainda que esteja localizado numa região privilegiada como o Sudeste. Durante os três dias em que estivemos em Vila Velha para o Movimento Cidade (15 a 17/8), ouvimos esse tipo de declaração dos moradores — o que soa até incompreensível, especialmente quando se está diante de uma paisagem tão bela quanto a das pedras na Praia da Costa.
O estado tem riquezas naturais e culturais, como o Congo, o Boi Pintadinho ou o batuque de Edson Papo-Furado, sambista que será homenageado no próximo ano pela escola de samba Unidos da Piedade — o Espírito Santo, vale considerar, mantém uma forte relação com o Carnaval, figurando entre os cinco maiores carnavais de pista do país.
Foi pensando em fomentar essa cultura local que os diretores do Movimento Cidade, Léo Alves e Luísa Costa, idealizaram o festival e assumiram a missão de fortalecer a cena capixaba — e isso vai desde a contratação da equipe, majoritariamente local, até a curadoria do line up. Por isso, o Movimento Cidade convidou profissionais de diferentes áreas da cultura espalhados pelo país não apenas para prestigiar o festival, mas para mergulhar, durante três dias, em toda a memória cultural que atravessa as pontes que ligam Vila Velha à capital, Vitória.
Para todos os gostos
O Movimento Cidade é, hoje, o maior festival de artes integradas do Espírito Santo. Em apenas sete anos, consolidou-se como evento que leva cinema e música gratuitos ao público capixaba. Nesta edição, assumiram a missão de celebrar a memória e a ancestralidade do estado, entre eventos gratuitos e fechados.
Nos dias gratuitos (15 e 16/8), passaram pelo Parque da Prainha, em Vila Velha, os shows de Trio Mocotó, Duquesa, FBC, Pabllo Vittar, BaianaSystem, Cátia de França, MC Luanna e Os Garotin, com destaque para as pratas da casa: Gastação Infinita, Ada Koffi e Branú. O festival também contou com o palco Meia-Lua, dedicado a DJs e bandas locais.
Para quem quis estender a noite, ainda rolou uma festa fechada na quadra da escola de samba MUG, com apresentações que incluíam ÀTTØØXXÁ, Irmãs de Pau, Valesca Popozuda e Carlos do Complexo, na sexta e no sábado. Mas a grande novidade desta edição foi o MC+, versão paga do evento que rolou no domingo (17/8) e contou com shows de Yago Oproprio, Marina Sena e Caetano Veloso, ponto alto da noite.
Destaques
O Gastação Infinita animou o público no sábado (16/8), com sua psicodelia-punk-folclórica e espirituosa, exaltando a cultura local em letras que citam as belezas do estado, da cidade de Marataízes à arte colorida de João Bananeira, personagem do carnaval de congo de Cariacica (ES). O público vibrou a apresentação de Hecthor Murilo, Matheus Tavares, Iago Tartaglia, Pedro “Puff” e Vitor “VT”, mostrando a efervescência e qualidade da cena local.
Ainda no sábado, o maior destaque foi a comoção gerada por Pabllo Vittar. Após dois anos sem tocar no Espírito Santo, a cantora levou o Batidão Tropical Vol. 2 (2024) para um público que lotou o Parque da Prainha, de onde se avistava, no alto de um morro, o Convento da Penha. Embaixo, o colorido dos leques compunha o tom de cada hit da cantora, de “Disk Me” a “Sua Cara”.
Confira outros cinco destaques da edição 2025 do Movimento Cidade:
Duquesa (Parque da Prainha, 15/8)
Assim que as luzes vermelhas anunciaram a chegada da rapper ao palco, os gritos do público fizeram com que até quem estava na praça de alimentação (como eu) corresse para assistir. Não tinha como não ir junto: Duquesa entregou um verdadeiro show de diva pop: balé, banda feminina e um palco formado por pessoas pretas, entregando sintonia entre cada um deles. Cantando em sincronia com o público os principais hits dos álbuns Taurus e Taurus Vol. 2, – como “Big D”, “99 Problemas” “Disk P@#$%&!”, Duquesa mostrou porque já é referência para uma nova geração. No fim, agradeceu: “As pessoas falam muito de artista, mas artista não é nada sem o público. Se eu tô aqui, devo isso vocês.”
Irmãs de Pau (after da MUG, 16/8)
Após os shows no Parque da Prainha, a festa seguiu para a quadra da MUG (Mocidade Unida da Glória). Quem abriu a noite foram as Irmãs de Pau, trazendo funk, pop, drill e representatividade travesti em uma energia arrebatadora. Vita Pereira e Isma Almeida apresentaram faixas dos EPs GAMBIARRA CHIC e GAMBIARRA CHIC pt. 2 sob uma chuva de leques do início ao fim. “Queimando Ice”, com participação de Duquesa, incendiou o público. O show também contou com performances de travestis locais e um discurso necessário de Isma: “Vocês têm travestis por aqui também, não precisam só trazer de fora. Vamos valorizar!”
FBC (Parque da Prainha, 16/8)
FBC subiu ao palco principal sob uma ventania de leques e gritos. Vestindo uma bandeira da Palestina, o mineiro mandou o repertório de seu mais recente álbum, Assaltos e Batidas (2025), acompanhado por uma banda de responsa (nos fazendo lembrar como é lindo ouvir os beats do rap acompanhados do peso de uma cozinha). Desde O Baile (2021), Fabricio crava seu nome no rap nacional, sempre trazendo novas eras para o seu som — do miami bass ao soul e disco music, passando, neste novo trabalho, pelo boom bap e exaltando o rap nacional em seus samples. “Roubo a Banco”, por exemplo, carrega o beat inesquecível de “Canão Foi Tão Bom”, de Sabotage. A trinca final do show, com os hits “Delírios”, “Rap da UFFÉ” e “Se Tá Solteira” recebeu mais calor do público. Mesmo não sendo a atração mais aguardada, FBC cativou uma plateia com discurso afiado e sempre coerente com suas convicções. Ao longo da apresentação, a bandeira da Palestina repousou ao fundo do palco, compondo a vista do Parque da Prainha. Mais um motivo para valorizar os eventos do estado: afinal, em Vila Velha — ao contrário de outras cidades — não teve censura.
Marina Sena (MC+, 18/8)
No domingo, o MC+ recebeu Marina Sena, que levou as faixas de Coisas Naturais (2025) ao palco principal. Vestindo um look da marca mineira HISHA e joias de Caio Mota, a cantora interagiu com um público que cantava junto tanto as músicas novas – como “Carnaval” e “Ouro de Tolo” – quanto os já consagrados sucessos de De Primeira (“Por Supuesto”) e Vício Inerente (“Tudo Para Amar Você”). Marina já tem uma relação próxima com o público capixaba: apresentou-se no mesmo Movimento Cidade no ano passado e lembrou que estreou o De Primeira (2020) tocando em uma live na pandemia, transmitida para o estado. Fechou a apresentação agradecendo a recepção calorosa que sempre teve do público local.
Caetano Veloso (MC+, 18/8)
Se o sábado ficou marcado pelo vai-e-vem de jovens pelo Parque da Prainha, o domingo recebeu uma diversidade geracional para prestigiar o show de Caetano Veloso. Após a bem-sucedida turnê com a irmã, Maria Bethânia, Caetano excursiona seu show solo por algumas capitais — e o reencontro com os capixabas ficou marcado no palco do MC+. Como de praxe, Caetano interagiu pouco com o público, deixando seu rico repertório musical falar por si. O diálogo artista-plateia ficou ainda mais próximo em canções como “Alegria, Alegria”, “Sozinho” e “Reconvexo”, já no fim da noite. Do alto de uma estrutura montada na lateral do palco, foi possível ver famílias se emocionando com a apresentação.
Enquanto “Alegria, Alegria” ecoava pelo Parque da Prainha, ouço um batuque contagiante ao meu lado. Era ninguém menos que a lenda do carnaval capixaba, Edson Papo-Furado que, do público, acompanhava tudo com seu repique. São experiências e encontros únicos como esses que fazem os festivais brasileiros serem tão especiais.