A discotecagem como conhecemos tem suas raízes nos anos 70, lá em Nova York, começando com o uso de dois toca-discos para criar mixagens espontâneas durante as festas de hip-hop. Aos poucos, a arte dos DJs foi evoluindo e dos vinis, passou para as CDJs nos anos 90 e para os computadores, pen drives e controladoras digitais nos anos 2000.
Ainda assim, a cultura da discotecagem com vinil nunca desapareceu e se mantém presente pelo mundo inteiro. Como qualquer indústria, no entanto, os preconceitos sociais também ocorrem no meio dos DJs e o protagonismo para esses mestres do vinil é quase sempre masculino — por isso, a Noize conversou com três mulheres que dominam a discotecagem com vinil na capital paulista para nos contarem sobre suas experiências com essa arte e a comunidade feminina que encontraram por meio dela.
Lih Lima
Com nove anos como DJ, Lih Lima é uma DJ paulista que centraliza seu trabalho na discotecagem com vinil. Curadora do bar de audição Soul Botequim, Lih também abre espaço para outros artistas e trabalha com a organização de espaços em que sua arte seja escutada e apreciada — incluindo em seus projetos Vale Night e Mundo D’Quebra.
“Quando vou convidar DJs, é sempre mulher e homem, nunca vai ser mais homem que mulher, tomo todo esse cuidado. Tenho muito essa minha preocupação, para garantir que as mulheres estejam, sim, em movimento”.
Lih, que começou a tocar em 2016, relata que começou a discotecar já com essa reverência aos vinis, devido a seu pai e seus tios — mas foi somente alguns anos após começar a colecionar que decidiu discotecar. “Foi numa Casa de Cultura e eu nunca havia tocado em público, estava muito nervosa”, conta ela sobre sua primeira experiência.
“Entrei, e não sabia mixar de um lado para o outro nos toca discos, tive que chamar o outro DJ para me explicar na hora. Mas no final deu certo, peguei a técnica e, em maio, completei nove anos de discotecagem”. Mãe atípica, Lih percebe que a cena não tem espaço para a maternidade: “Somos potentes, estudamos, temos conhecimento e embasamento, mas sofremos um apagamento”. Ela acrescenta que foi em sua rede de apoio feminina, com destaque para a DJ Vivian Marques, que encontrou motivação para continuar tocando mesmo com esses obstáculos.
Lih, como mulher preta, gosta de dedicar-se a projetos que aumentam a diversidade na cena, por exemplo o Mundo D’Quebra, seu projeto de discotecagem para crianças PCDs. Idealizado com sua amiga, a DJ Aline Puff, o Mundo apresenta a cultura hip-hop e os vinis para os pequenos, mesclando-a com toda parte sensorial para tornar o espaço adequado para crianças atípicas, especialmente autistas.
Sô Lyma

Sô Lyma também começou a tocar em 2016, inspirada pela coleção de vinis de sua mãe (“Que era algo meio intocável”) e por ter visto ao vivo um set do DJ haitiano Kaytranada, em setembro do mesmo ano. A artista, que cresceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, sempre esteve conectada com a arte, já tendo feito teatro, trabalhado como modelo e até sido educadora infantil. Segundo ela, a arte sempre foi algo pelo qual ela é fascinada, e sempre absorveu conhecimento com facilidade.
Com a discotecagem, não foi diferente: com apenas dois meses de treinamento, Sô Lyma já tocou seu primeiro evento. Começando nas batalhas de rima do Rio de Janeiro, a DJ desenvolveu um relacionamento extremamente próximo com a cultura do hip-hop — como ela mesma diz: “Sendo uma mulher preta, me agarro ao que eu sou, me agarro ao que eu tenho”.
“O hip-hop me salvou de verdade, essa manifestação de eu estar dentro dessa cultura, dentro do movimento, fazendo a minha arte, compondo com outras pessoas, me salva todo dia. Não consigo totalmente abrir mão nunca do rap underground, ele me movimenta, faz tudo acontecer”.
Lyma já se apresentou em festas da Vogue, festival Coala, Rock in Rio, Rock The Mountain e mais, e agora está prestes a lançar um set para o projeto Discos N’Agulha, da gravadora Som Livre, um dos nomes mais clássicos da música brasileira.
Mesmo que tenha começado no rap, Sô Lyma é uma artista que transita entre gêneros, já tendo eras em que tocou pop, afro beat, funk, brasilidades e agora está focando mais na música eletrônica. Crescendo constantemente na cena, a DJ está fazendo aulas de produção musical, porque seu próximo passo agora é criar música autoral.
“Tenho sonhos de cantar house, de discotecar a minha música, proporcionar produções minhas para outros artistas. Quero trazer a minha artista completa Sô Lyma, quero ser uma diva pop, eu tenho muita vontade de ser conhecida no mundo inteiro”, conta.
Vinda de uma família apaixonada pela música e carregando o legado da black music com ela, a artista celebra a presença feminina cada vez maior na cena, especialmente a de outras mulheres negras. “A cena sempre fortalece um homem, não adianta. Competir com isso é realmente abraçar o feminino que você tem. Tive que entender que eu mesma tinha que me afirmar e me aceitar — e é muito gostoso isso, fico muito grata por estar atraindo olhares de outras meninas”, diz ela.
Hanifah

“Ter esse objeto, esse artigo físico, é de um valor ainda maior do que a gente consegue calcular em relação à música — tenho essa intimidade muito forte com o vinil”
Quem nos conta é Hanifah, cantora, compositora e filha do lendário DJ KL Jay.
Mesmo que discotecar não seja o trabalho principal, Hanifah sempre teve contato com essa forma de arte via seu pai — e desenvolveu um contato ainda mais direto pelo projeto Audição. Nascendo da conexão entre ela e KL Jay, o projeto veio da troca de músicas entre os dois, destacando o potencial dessa troca entre gerações.
No Audição, Hanifah e KL Jay apresentam músicas um ao outro, discotecando juntos e trocando com a audiência quando o evento é ao vivo. Com esse projeto, Hanifah aprofundou ainda mais seu amor pela discotecagem e pelo vinil: “A gente leva vinil, serato, eu canto as minhas músicas e mostramos as músicas que fizeram parte da nossa história — cada edição é diferente, porque vamos lembrando de outros artistas, outras músicas, outras histórias”.
Mulher preta na indústria, Hanifah também exalta a conexão entre a discotecagem com vinil e a cultura do hip-hop: “A gente acaba se identificando com os artistas, as pessoas, que de alguma maneira nos fortalecem. Esse acesso aos artistas, essas histórias musicais, sempre me ensinaram a ser uma mulher independente, uma mulher que tem posição, que faz seus movimentos por si”.
Lançando um novo single, “Unha de Foguinho”, Hanifah declara que sua música é um espaço de protagonismo feminino. Ela ainda manda uma mensagem de acolhimento para mais mulheres adentrarem essa forma de arte.
“Sinto que as DJs estão cada vez mais mostrando que é um ofício para todas. Gosto muito de ver as mulheres discotecando e acho muito revolucionário ver esse movimento de mulheres DJs. Torço para que isso se fortaleça cada vez mais, essa profissão que eu admiro tanto”, finaliza.