Deu no New York Times: em abril, o crítico norte-americano Jon Pareles recomendou “Numa Ilha”, de Marina Sena, como um dos grandes lançamentos do pop, ao lado de Miley Cyrus e Bruce Springsteen. Só que um detalhe chama a atenção: a única música brasileira da lista foi classificada como uma bachata.
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Lia-se no jornal: “O balanço suave de ‘Numa Ilha’ mistura guitarras de baixa reverberação com a dedilhação staccato. Já os tambores de bongô da bachata trazem alegria a cada síncope”.
Bachata who?
Talvez você não conheça de nome, mas a bachata não é novidade – nem para o Brasil. Misturando guitarra sincopada e bongô, é herdeira direta do bolero. Surgiu em 1950, nas periferias rurais da República Dominicana, e chegou em peso por aqui nos anos 1980.
Hoje, a bachata está em alta – e se espalhou mundo afora: você ouve, por exemplo, em “La Fama”, de Rosalía com The Weeknd:
Ou nesta parceria de Bad Bunny com o grupo Aventura, uma espécie de “Menudo da bachata”.
Com essas informações, fomos investigar: Marina Sena apostou mesmo em uma bachata, ou o hit apenas evoca uma sensualidade romântica – e natural – da música popular brasileira?
Buscando respostas, fomos atrás de especialistas no assunto.
Pra começo de conversa
Primeiro, procuramos entender, o que, afinal, era a bachata. O pesquisador musical Fernando Llanos esclarece: “O gênero surge das festas rurais do país. É uma música dançante e arrastada, que mistura guitarras e bongôs.”
Breno Boechat, jornalista musical, nos explica como soa: “O violão solo – chamado de requinto – faz os desenhos melódicos rápidos, quase como se estivesse ‘cantando junto’, jogando um molho por cima da melodia principal. Enquanto isso, o violão-base segura uma batida lenta e contínua, meio hipnótica. Costuram essa base o baixo, os bongôs e a guira, um tipo de reco-reco. É ele que dá aquele ritmo arrastado, dançante e até meio caseiro para o som”, complementa.
Ficou confuso? Ouça só um exemplo dessa levada do violão com o bongô – que fez muito sucesso no Brasil:
A bachata popularizou-se por aqui nos anos 1990, num intercâmbio com o sertanejo e a música romântica. Pode ser ouvido, por exemplo, na levada de “Borbulhas de amor”, hit de Fagner que nasceu da versão do cantor dominicano Juan Luis Guerra. Ou até no hit “Você Vai Ver”, de Zezé de Camargo e Luciano.
Hoje, nomes como Gusttavo Lima usam e abusam da bachata em seus hits românticos: é o caso de “Desejo Imortal” – música que, curiosamente, é uma versão de Roxette. Ou seja, o cantor saiu do pop new-wave suíço, cruzou o oceano caribenho e criou uma legítima sofrência brasileira.
Intercâmbio musical e sofrência: não tem nada mais bachata que isso. Afinal, o gênero, além de ter se espalhado mundialmente, também envolve uma batida sensual com letras de fossa – no bom estilo “triste com tesão”. “A bachata é feita para dançar colado, mas também para sofrer calado”, sintetiza Fernando.
Bachata no filtro de barro
Apesar das referências da música romântica brasileira que “Numa Ilha” carrega – e aí, fica claro que a crítica norte-americana ignora nossa música popular em detrimento da bossa nova – a canção parece mesmo carregar uma levada pop-bachatiana, mais ou menos como fez Rosalía em “La Fama”.
Fernando explica que “Numa Ilha” poderia ser classificada como uma “neo-bachata”: “Temos o staccato, bongô, um derecho bem definido na introdução e estrofe, um majao marcado no coro, linhas bem groovadas no baixo e uma guitarra rítmico-melódica que lembra o estilo”, conclui.
Breno concorda: “Não é uma bachata ortodoxa, mas a estética está lá: aquela vibração dançante, introspectiva e, ao mesmo tempo, romântica. Evoca o imaginário latino, mas tem o frescor pop brasileiro da Marina. É um híbrido que conversa com a pista de dança e a tradição da música romântica brasileira. É a bachata filtrada por um filtro de barro mineiro. É coisa nossa. E que bom que é assim!”.
*A matéria na íntegra você lerá na Revista Noize que acompanha o vinil Coisas Naturais (2025), lançado pelo Noize Record Club.