Patrimônio nacional: as trilhas sonoras de novelas que marcaram época

17/06/2025

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Por: Marcos Lauro

Fotos: Reprodução/TV Globo

17/06/2025

Uma certeza que qualquer um pode ter ao visitar uma loja de vinis usados é a de que encontrará ali trilhas sonoras de novelas. E mesmo com sucessos estrondosos (mas pontuais) de outras emissoras, é muito difícil não associar o tema “trilha sonora” às novelas da TV Globo devido à sua produção incessante de três obras simultâneas no ar, de longa duração, que só foram pausadas na pandemia de Covid 19. Dos anos 1970 até 2021, quando a Globo encerrou oficialmente a produção em mídia física, a trilha, com o passar do tempo, deixou de ser apenas um produto auxiliar da obra televisiva e passou a ser assunto principal.

Mas primeiro, pra falar sobre trilhas, precisamos separar as coisas: 95% do que é produzido musicalmente para uma novela nem vira um fonograma, ou seja, não se torna uma “música”, uma faixa num disco. “Entrei na Globo em 1994 e meu primeiro trabalho de dramaturgia foi em Você Decide, que era uma mininovela por semana”, conta o compositor e produtor Mú Carvalho, que viveu intensamente esse bastidor.

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“As músicas originais, instrumentais, são uma escola interessante. Eu aprendi muito ouvindo os grandes mestres, Henry Mancini me ajudou muito na comédia. John Williams, Ennio Morricone, enfim. A música joga pra cima uma cena, é impressionante o poder. Foram 25 novelas em 28 anos. E cada novela é um desafio”, completa Mú. O papel dele, enquanto produtor musical, é entender a trama por meio de sinopse e perfis dos personagens, fazer reuniões com os diretores – por vezes, também com o autor – e entregar 80% do material antes mesmo das gravações começarem.

Luz, câmera e…som!

Mas vamos voltar no tempo e passear por esses discos que você acha nos sebos. A primeira novela que associou músicas de sua trilha a personagens específicos foi Beto Rockfeller (1968), da TV Tupi. No ano seguinte, André Midani (executivo da Philips) propôs à Globo uma parceria, na qual a gravadora faria trilhas originais para as tramas da emissora.

É dessa fase as trilhas de Véu de Noiva (1969), Irmãos Coragem (1970) e A Próxima Atração (1970), que traziam composições de artistas contratados pela Philips na época, como Rita Lee (recém lançada solo), Tim Maia, Chico Buarque e Caetano Veloso. Alguns desses discos são bem valorizados hoje em dia: no Mercado Livre, o LP de A Próxima Atração, por exemplo, está custando entre R$150 e R$390.

Créditos: Solano de Freitas – Estadão Conteúdo

A importância da Som Livre

Em 1969, a Globo criou a gravadora Som Livre, com a qual passou a produzir seus discos nos próximos anos. Um exemplo é a trilha da novela A Escalada (1975), estreia de Ney Latorraca na TV Globo e que tinha Tarcísio Meira como protagonista.A trilha já traz o conceito que seria mantido por anos: os discos “Nacional” e o “Internacional”.

No caso, sete das 14 faixas foram produzidas especialmente para a novela. Já o disco Internacional é uma coletânea de rocks e de orquestras, com gravações originais de Elvis Presley, Neil Sedaka e The Glenn Miller Orchestra, entre outros.

No ano seguinte, a novela Saramandaia (1976) deixaria nítida a importância das trilhas para os artistas. Ednardo lançou seu disco de estreia — O Romance do Pavão Mysteriozo (1974) — e foi ignorado inclusive por sua própria gravadora, a RCA Victor, que não fez nenhum esforço de divulgação.

Dias Gomes, autor da novela, escutou o disco e selecionou a faixa “Pavão Misteryozo” não apenas para a trilha sonora, mas para a abertura da atração. A partir disso, Ednardo teve reconhecimento nacional com uma música que abertamente criticava a Ditadura Militar em seu pleno curso.

Na segunda metade dos anos 1980, rolou um certo revival dos anos 1950 devido ao estrondoso sucesso da série Anos Dourados (1986). Por conta disso, a novela Bambolê (1987), foi adaptada para esse período histórico e a trilha sonora seguiu por esse caminho. Com uma diferença: no lugar da tradicional dobradinha de discos “Nacional” e “Internacional”, a trilha saiu em dois álbuns, mas com as músicas brasileiras e gringas intercaladas.

O primeiro disco abre com “Conquistador Barato” (também tema de abertura da novela). “Essa música foi uma encomenda. A sinopse me foi enviada, vi que era uma novela de época e escolhi umas gírias adequadas para a letra. A encomenda também dizia que eu tinha que mencionar a palavra ‘bambolê’, e eu a coloquei na introdução”, conta o cantor e compositor Leo Jaime, que no mesmo ano seria protagonista do filme As Sete Vampiras, de Ivan Cardoso.

Créditos: Nelson Di Rago/Memória Globo

“Eu sempre fui ou quis ser ator e achava ótimo estarem pintando convites pra eu fazer cinema, como no caso deste filme e do Rock Estrela (1986). Também compus as músicas para estes dois longas. Essas encomendas eu preferi escrever sozinho. Foi importante pra mim, e também para o cinema brasileiro, criar essa conexão com a música pop nestes e em outros filmes”, completa Leo, que se tornara uma espécie de “John Travolta brasileiro”, com suas roupas de couro, muito gel no cabelo e o charme irresistível, além da postura de bad boy.

Na trilha de Bambolê, também aparece um dos incontáveis sucessos de Michael Sullivan e Paulo Massadas. Nomes onipresentes nas discografias populares dos anos 1980, no caso, eles fizeram “Festa do Amor”, com Patrícia Marx, uma música inocente, um rock and roll clássico, com palminhas acompanhando a canção. Bem ao estilo, claro, das décadas de 1950/60, como mandava a encomenda da emissora.

A trilha de Saramandaia também traz outro detalhe importante: Sonia Braga canta o tema da sua própria personagem, Marcina. “Sou O Estopim”, composta para a novela por Antonio Barros, se tornou um clássico do forró com diversas regravações.

A atriz Marilia Barbosa também canta “Caso Você Case”, composição de Vital Farias. Aqui, a trilha mostra que não é mais apenas um produto complementar à novela, mas que tem peso e importância ao ponto de mobilizar compositores e até parte do elenco para sua produção.

Grandes sucessos

Dois anos depois, chegava um dos grandes êxitos da história das trilhas sonoras de novelas: Tieta (1989). A adaptação livre do romance Tieta do Agreste (1977), de Jorge Amado, também teve dois discos, mas apenas com músicas brasileiras. Com produção de Mariozinho Rocha, o primeiro disco traz a impactante música de abertura da novela, “Tieta”, com Luiz Caldas, uma composição de Boni e Paulo Debétio.

Segundo Caldas, em diversas entrevistas, “Tieta” foi a música que consolidou a Axé Music no país e é presença obrigatória até hoje no repertório dos seus shows. O segundo disco, lançado no mesmo ano, reforça o tom sertanejo da trama, que se passa numa cidade fictícia do Nordeste.

Aqui vale um parêntese para falar de Mariozinho Rocha. “Tieta” marca sua volta à TV Globo, onde já tinha estourado com a trilha de Roque Santeiro (1985). Mariozinho tinha o trabalho de ouvir discos, selecionar músicas já lançadas, pra que fossem encaixadas na trama, e também de produzir faixas inéditas, encomendadas pela emissora para compositores e artistas específicos.

Seu trabalho em “Tieta” foi tão marcante que, quando a novela foi reexibida na grade de reprises Vale a Pena Ver de Novo, em 1994, a Globo soltou um terceiro disco, em CD, que era uma espécie de coletânea dos dois primeiros, com as faixas principais de cada um. No total, Mariozinho Rocha teve 30 anos de serviços prestados como diretor musical da TV Globo.

Em 1986, chegam ao mercado os lançamentos da Bloch Discos, o selo da TV Manchete para as trilhas das novelas do canal. E em quatro anos, a Bloch conseguiu estourar com a trilha de Pantanal (1990), que incomodava a Globo não apenas musicalmente, mas também pela sua audiência. A saga de Benedito Ruy Barbosa conseguia passar a Globo nas medições do Ibope e, quando não conseguia, garantia um segundo lugar com folga em relação ao SBT.

O sucesso foi tão grande que a trilha ganhou um segundo disco no mesmo ano, mantendo o tom com músicas nacionais. Em 1991, a Manchete tentou repetir o fenômeno com Ana Raio e Zé Trovão e uma temática muito parecida com a novela anterior. Nas duas tramas, nomes do sertanejo, como Chitãozinho & Xororó, dividem as faixas com artistas da MPB, como Chico Buarque e Maria Bethânia.

Após o susto com o sucesso da Manchete, a Globo voltou a dominar o cenário. Já nos anos 2000, uma novela que chamou muita atenção por conta da trilha foi Chocolate com Pimenta (2003). Mú Carvalho conta como compôs a faixa de abertura:

“Mariozinho Rocha pediu pra dois compositores fazerem a abertura numa coisa meio anos 1920, 1930. E não vingou. Jorge Fernando, o diretor, não gostou. Tentaram com outros dois compositores e também não deu. E me ofereci pra Mariozinho, que me deu essa oportunidade. Fiz a música, gravei, coloquei uma voz sem palavras ainda, com scats, e mandei pro Jorginho, que adorou. Mariozinho também. E mandaram a música pra Aldir Blanc, que fez a letra em dois dias. Foi o meu maior sucesso”.

Em 2021, Mú juntou suas composições num álbum chamado Mú Carvalho – As Canções Que Eu Fiz para Novelas (2021). “95% do que eu fiz pra Globo foi música instrumental dramatúrgica. Mas em alguns momentos, eu tive a sorte ou merecimento de ter convites pra fazer músicas ‘cantadas’ – a chamada obra lítero-musical”, diz ele.

“E eu quase não escrevo letra, é sempre com parceiros. E aí, quando me dei conta de que eu tinha feito umas 15 músicas cantadas pra novelas – o que é raro de acontecer pra um produtor musical –, pensei em fazer o disco. Eu vi que os meus colegas não tinham esse número gigante – e eu digo ‘gigante’ porque esse setor de músicas cantadas não ficava pra gente, a gente realmente não botava o dedo. A Som Livre topou e saiu esse disco”, completa.

Atualmente, o mercado de trilhas sonoras se resume a playlists oficiais em plataformas de streaming. No Spotify, por exemplo, o perfil Gshow Playlists publica as trilhas das novelas. Hoje, as novelas talvez sintam falta de ter seus discos sendo expostos em lojas populares, enquanto as trilhas sentem falta de novelas que paravam o país e muitos artistas sentem falta de ver suas carreiras mudarem por causa de um personagem fictício.

*Esta matéria foi publicada originalmente na revista Noize 87 que acompanha o disco Novela, da Céu, lançado pelo Noize Record Club.

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17/06/2025

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Marcos Lauro