Lançado em 21 de agosto, Contato é o terceiro álbum da banda paulistana Pelados. Formado por Manu Julian, Lauiz, Vicente Tassara, Theo Ceccato e Helena Cruz, o grupo traz influências que vão do indie ao krautrock, do ambient ao hiper pop, sem nunca perder a personalidade em um álbum que mistura uma formação clássica de banda de rock – guitarra, bateria, baixo, voz e teclas – com samples inusitados, interferências eletrônicas na pós-produção e muitos sintetizadores.
Produzido e composto de forma coletiva, o trabalho conta com feat de Felipe Vaqueiro (da banda Tangolomangos) e constrói um retalho de referências ao mundo e à música contemporânea. Em Contato, os Pelados compõe como quem está em uma espaçonave, observando a Terra. Na faixa “planeta oxxo”, por exemplo, a rede de mini mercados que tomou conta de São Paulo aparece enquanto elemento de estranhamento na paisagem: “Hoje ostenta o nome na fachada/ Amarela, branca e vermelha”.
O verso que abre o disco (“Vamos acabar com a MPB”), além de uma provocação e uma brincadeira, é uma forma de definir o trabalho da banda, que usa métodos, vocabulários e sonoridades tão pouco convencionais para a cena da “nova música brasileira”. Mesmo com toda a iconoclastia, o grupo ainda rende homenagem em “instruções para descongelar gilberto gil no espaço”. Em referência ao mestre da MPB, talvez os Pelados sejam mesmo um “Objeto Semi-Identificado”.
Conversamos com Lauiz, Theo e Vicente sobre o trabalho. Abaixo, leia a entrevista e o faixa a faixa do disco.
O álbum traz um conceito bem fechado. Por mais que nem todas as músicas tenham ligação direta com ele, dá uma guia. Queria saber como funcionou esse processo: vocês primeiro pensaram no conceito e depois encaixaram músicas que já existiam ou foram criando a partir disso?
Vicente: Cara, eu diria que, nos gêneros que a gente trabalha, o conceito costuma vir depois. Se você faz um disco de metal progressivo, talvez já pense desde o início na história que quer contar, mas no nosso caso o conceito veio mais a posteriori. É engraçado você falar que o conceito é tão sólido, porque na nossa cabeça ele não é tanto assim. Eu gosto desses discos com conceito que, na real, dão liberdade para você fazer o que quiser em cada faixa. O Sgt. Pepper’s é um exemplo disso: músicas completamente diferentes, mas todas tocadas pela mesma “outra banda” que os Beatles estafam fingindo ser. A gente pensou parecido: o conceito do espaço é amplo, cabe tudo. A gente comprou um pouco essa ideia da Voyager, aquela missão da NASA que mandou sons para o espaço. O legal é justamente essa diversidade absurda: barulho de baleia, discurso do secretário-geral da ONU, uma pessoa falando em acadiano… qualquer coisa podia entrar ali. E o nosso disco seguiu essa lógica. Então, o conceito acaba sendo mais uma forma de comunicação, um jeito de dar coesão depois. Mas a coerência entre conceito e músicas foi meio acidental. Existe uma modalidade quase acidental nas nossas canções. Acho que isso veio da vida mesmo: o disco anterior era muito romântico e melancólico, e esse acabou sendo diferente não por escolha racional, mas porque esses assuntos parecem mais urgentes agora. Sim, é um conceito, mas um conceito arbitrário.
As faixas trazem palavras que só existem hoje — WhatsApp, Oxxo, etc. Queria saber como isso entra no processo de criação: como surgem essas canções que usam esse vocabulário contemporâneo, mas sempre com um certo estranhamento?
Lauiz: Acho que tem um lado dos Pelados de valorizar a honestidade nas letras. A gente prefere falar do que vive, em vez de criar um personagem ou algo performático. Os arranjos são mais malucos, mas as letras são diretas. Às vezes acabam engraçadas, mas nunca é de propósito, não é para chocar. A gente escreve bastante, descarta muito, e o que fica é o que realmente faz sentido para nós.
Theo: Engraçado você falar disso porque até hoje eu não tenho uma conclusão sobre o humor no disco. Tem frases que parecem piada, mas não são, e outras que foram feitas só para cutucar. O “Vamos acabar com a MPB”, por exemplo, foi o Luiz querendo provocar, não tinha uma reflexão profunda ali. O limite do humor no disco é quase acidental. A gente nunca pensa: “Vamos escrever algo engraçado”. Mas acaba saindo, talvez por causa desse sincericídio, de neuroses pessoais que viram letra. O caso de Oxxo veio muito disso. É uma empresa real, que dominou São Paulo com trabalho precário. O Vaqueiro trouxe esse tema, e a gente acabou escrevendo em cima. Outras vezes, como em “WhatsApp 2”, o título foi só para provocar alguém da banda. Então, muito vem desse lugar: falar do contemporâneo, sim, mas às vezes só como uma reclamação de “jovem velho” ou uma piada interna.
Vicente: E tem outra coisa: às vezes esses termos nem aparecem na letra, só no título. Os títulos são feitos para serem bem-humorados mesmo, quase marqueteiros. Não dá para fingir que não foi pensado pra soar divertido. Já nas músicas, as imagens podem até sugerir essas referências, mas sem citar diretamente.

Vocês são realmente uma banda no sentido de trabalhar coletivamente. Como funcionam os arranjos, letras e esse processo de criação entre amigos?
Lauiz: Muita briga [risos].
Theo: A gente trocou tudo nesse disco. Produzimos, gravamos, o Luis mixou, mas todo mundo opinou. As músicas são bem compartilhadas, mas não foi todo mundo junto compondo ao mesmo tempo. Muitas ideias começaram incompletas, alguém trouxe um pedaço, outro complementou, e elas foram crescendo de mão em mão. Gravar no estúdio do Luis, de graça, também dá liberdade de experimentar. Então o processo é coletivo, mas picotado: uma ideia surge, passa anos sendo retrabalhada até virar música. O arranjo nasce muito da gravação. Poucas vezes sentamos com os instrumentos como “banda” para resolver. O disco é quase uma montagem de ideias.
Lauiz: E quando tem tanta gente envolvida, se você quer que sua ideia vá para frente, precisa lutar por ela. Se a ideia não for boa, você percebe rápido. Normalmente alguém sugere, os outros desconfiam, e aí a pessoa insiste: “faz, vamos ver”. Às vezes não funciona, mas muitas vezes sim. Esse processo incentiva a gente a testar tudo. Claro que rolam atritos, mas ao longo desses 10 anos a gente sempre supera. No fim, o orgulho pelo resultado fala mais alto. Quase nunca descartamos uma música pronta, e quando descartamos, geralmente todo mundo concorda. Às vezes ela até volta em outro disco.
Tudo que vocês falaram me leva a entender que tudo flui naturalmente, mesmo com brigas. Não é nada programado. A sonoridade do disco, com a mistura de instrumentos orgânicos e eletrônicos, surge a partir das jams, ideias de frases ou melodias, que vão sendo retrabalhadas e recebendo novos elementos. É isso?
Theo: É isso. Muitas músicas começam com demos, que já têm elementos eletrônicos. No disco, usamos sons dessas demos misturados com bateria, sintetizadores e arranjos, e isso deu resultados muito bons. A soma do eletrônico com o orgânico ajudou a arrumar imperfeições e trouxe diversão ao processo. A gente também aprende com os erros. Ao longo do tempo, vai ficando melhor e mais criativo com essas “errâncias”. O Luiz, que tem estúdio, nos ajudou muito nisso. E a gente sempre deixou espaço para a vontade do momento: se alguém estava empolgado ou encanado em determinado dia, isso refletia no disco. O uso das eletrônicas aconteceu porque o Luiz tem equipamentos divertidos, que são eletrônicos, mas com organicidade, como sintetizadores, 808, 303 processados na mão. A banda tradicional — baixo, bateria, guitarra, teclado e voz — foi apenas o ponto de partida. Durante a gravação, todo mundo contribuiu, experimentou grooves, simples, percussão. O formato da banda foi deixado de lado, com liberdade e despretensão.

Faixa a faixa Contato
1. “os pelados sabem demais”: Começamos com uma letra que, na hora, não tinha intenção de ser engraçada, mas acabou divertida, cheia de siglas rimadas. Mostramos a versão inicial, só com bateria e voz, e todos ficaram animados: “Vamos gravar essa”. Então fomos adicionando ideias juntos. A letra quase não mudou e se encaixou bem. Nessa época, a ideia de espaço sideral e de ver o mundo de fora já permeava o disco, como se mandássemos a música para o espaço. Misturamos referências contemporâneas, como siglas, transmitindo uma ideia de decolagem no início do disco. O groove é simples e os arranjos surgem naturalmente: bateria, sintetizadores, guitarra e vocais se combinam enquanto tocamos.
2. planeta oxxo: Essa é a única faixa com participação especial: o Vaqueiro. Surgiu de uma demo que o Teo tinha e mostrou para o Vax enquanto estávamos em turnê pelo Sul. Na época, a Sofia havia se machucado, e o Teo também, e o Vax estava ajudando no show, assumindo partes para a Sofia. O Vax é uma máquina de criar música, sempre ativo, então a colaboração surgiu naturalmente. Ele escreveu a letra da faixa, e nós adicionamos uma segunda parte com outra melodia. A música reflete o olhar de alguém de fora sobre São Paulo: intensa, rápida, perigosa, fascinante. Dentro do conceito do disco, pensamos nela como parte do lado mais “terreno”, antes da viagem espacial. Ela contrasta com a ironia e o humor de “Os Pelados Sabem Demais”, trazendo um tom mais mundano e até sentimental, com uma certa melancolia no meio da energia urbana da cidade.
3. enel: Essa foi escrita a dez mãos, a única do disco em que todos nós contribuímos para a letra, o que a torna um verdadeiro caos de retalhos. Cada um trouxe algo, e isso deu à faixa uma cara muito específica. A história por trás dela: estávamos em um show no Picles. Passamos o som, mas apagões constantes em São Paulo cortaram a energia, e acabamos esperando até meia-noite no camarim, tocando violão e rindo no escuro. O show acabou não acontecendo, e essa experiência acabou entrando no espírito da música.

4. não sei fazer refrão: Essa música é da Helena. Ela pegou uma demo que havíamos descartado e conseguiu ressuscitá-la, criando letra, refrão e versos, dando uma personalidade própria à faixa. O refrão ficou elegante, e gravamos camadas de vozes com o Teo e uma drum machine, criando um efeito mais amplo e pesado na bateria. Misturamos também um sample de “Blind”, Willie Johnson, do disco que a NASA enviou ao espaço, que trouxe uma energia divertida e quebrou a uniformidade do arranjo. A música poderia ter sido a mais convencional do disco, mas o sample deu caráter e remete ao som do primeiro disco dos Pelados. Mostra como usamos referências históricas e samples para construir algo divertido.
5. whatsapp 2: Essa faixa nasceu de uma demo que havíamos criado. A letra inicial era direta, sobre querer falar com alguém pelo zap, e tinha elementos meio caóticos, com vozes sobrepostas e barras improvisadas, bem insanas, típicas do nosso estilo mais experimental. Durante o processo, ajustamos a música para equilibrar essa loucura com uma estrutura que funcionasse como canção pop dos Pelados, navegando entre R&B, jazz e referências contemporâneas. Passou por muitas interações e conflitos, mas o resultado final mantém a sensação de descoberta e frescor que buscamos.
6. mommy empresta o carro: Nessa faixa, enfrentamos muitos desafios de arranjo. A Manu trouxe uma parte falada que parecia não se encaixar, então testamos várias soluções: softwares malucos, efeitos inusitados, até furadeira. No final, processamos a voz dela com pitch shift, distorção e delay, criando uma textura monstruosa que funcionou para a ideia da música. O arranjo tem uma pegada noventista, inspirada em bandas como Slowdive, com sons etéreos e camadas que dão profundidade à faixa. Tudo isso mantém o espírito experimental do disco, equilibrando caos e controle de forma divertida.

7. modric: Nasceu como uma demo improvisada durante o “Foi Mal”, uma faixa meio engraçada e bizarra. Depois, ajustamos a letra, amenizando referências internas demais e dando mais coesão. O mais icônico hoje é a guitarra, que transforma a faixa em algo noventista, com uma energia própria. A bateria e os arranjos evoluíram junto, e a música acabou se encaixando perfeitamente na ordem do disco, próximo a outras faixas com clima anos 90. Essa faixa especial porque convivemos com ela e com o público por muito tempo antes da gravação, e isso trouxe maturidade à versão final. Ela conecta sentimentos coletivos ligados ao futebol e à identidade nacional de forma quase intuitiva, mesmo sem ninguém da banda ser muito ligado ao esporte.
8. estranho efeito: Começou como uma ideia totalmente solta, só um groove de bateria montado no Garageband, mas esse groove acabou dando toda a cara da música. Melhoramos o timbre, processamos e deixamos insano, mas o princípio continua o mesmo. A Manu e a Lê escreveram uma letra linda, uma das mais delicadas e comunicativas do disco, trazendo imagens muito bonitas sobre a vida. Nossa contribuição foi mínima, só algumas palavras, mas a música ficou gostosa, pop, dançante e com um arranjo pouco óbvio, que funciona sem exigir esforço do ouvinte. Mesmo com formas estranhas e ideias improváveis, é leve e divertida, mantendo a espontaneidade das demos que fizemos. É pop, acessível, mas com pequenas estranhezas.
9. boy meets girl: É uma das músicas mais antigas do disco, escrita em 2020. Originalmente, tínhamos um arranjo simples no violão, meio bossa nova, com linha de baixo discreta, mas sentíamos que não tinha muito sentido desistir dela. A Helena pegou essa base e criou uma demo completamente diferente, revelando um sentido que não percebíamos antes. O diálogo bilíngue, por exemplo, surgiu sem intenção, mas acabou funcionando. A transição final também foi inventada de forma maluca: a bateria desaparece e a música reinicia, quase como um resgate arqueológico de uma canção antiga. Acabou com uma cara indie e psicodélica, com grooves sutis, muito a nossa cara, e uma sonoridade que gostamos muito.

10. boy, so confusing (lauiz e doutor smirnoff enfrentam seus fantasmas no planeta xcx): Essa música é muito especial para nós. Tínhamos duas demos bem diferentes, e o desafio foi conectá-las. A ideia do xadrez veio como metáfora: dois jogadores duelando, cada movimento estratégico, como se fosse um duelo entre nós dois, tentando fazer a música funcionar. No início, eu queria incluir referências ao Tom Cruise, que simbolizava determinação e situações impossíveis, mas acabamos transformando isso na metáfora do xadrez. A música se tornou meio metalinguística, um diálogo entre nossas ideias, mostrando a construção coletiva do som.
11. e aí, beleza?: Essa música surgiu de um áudio de celular que recebemos da Manu de madrugada, totalmente surtex. Era bem comprido, então recortamos partes que ficaram na imaginação e no grupo de WhatsApp da banda. É uma música genial. A Manu improvisando tudo, literalmente num momento ébrio, e a gente achou isso sensacional. No fundo, ela representa um recorte de momento, uma memória viva. Se tem algo que a música faz é registrar esse instante. É exatamente isso: um fragmento de momento, puro e espontâneo.
12. music is supposed to be fun: Essa música surgiu num momento de pouca ideia, durante a gravação do disco. É uma música muito sincera, que fala sobre o que é trabalhar com música: às vezes o envolvimento tira o prazer, e essa música parte desse sentimento de “por que estou fazendo isso?”. Ela tem uma contradição performativa interessante: cantar algo como “music is something… I don’t care” por quatro minutos cria uma catarse, mesmo sendo sobre não querer fazer música. A ideia de pegar fragmentos curtos e esticá-los transforma a música, começando de um jeito e terminando de outro, quase épica. Uma sacada legal foi um sample que usamos para marcar a transição entre duas partes. Ele veio de uma peça sinfônica inspirada em Nietzsche. Então, de certa forma, há uma mensagem filosófica escondida no disco, um poema sinfônico secreto sobre Zaratustra.

13. star trek: Essa música fecha o disco de um jeito especial, funcionando como um epílogo. Ela pega trechos de várias músicas do disco e monta um quebra-cabeça sonoro, criando uma sensação de ambient e reflexão, como se você estivesse longe da Terra, olhando para as estrelas e lembrando de tudo que ouviu até aqui. Ela representa a mentalidade do disco como um todo, quase como um filme, com momentos crus e outros totalmente produzidos. Musicalmente, há uma forte influência do Apollo Soundtracks and Atmospheres de Brian Eno e Daniel Lanois, que trouxe essa sensação existencial e espacial. É uma das músicas mais lindas do disco e cumpre seu papel narrativo de fechar a obra com beleza e profundidade.
14. instruções para descongelar gilberto gil no espaço: A letra é da Manu, que pegou um demo com teclado e bateria e conseguiu transformar tudo em algo coeso. A voz, a letra, a instrumentação — tudo funcionou perfeitamente. É uma música bonita, que fecha o disco de maneira significativa, como se fosse nossa mensagem para o espaço. Há uma ironia no começo — “ah, foda-se MPB, foda-se não sei o quê” — mas, no fundo, é amor pela música, pelas referências e pelo que estamos fazendo. O disco mistura samples e referências, como se estivéssemos enviando sinais aleatórios, tentando que alguém “capte” algo no outro lado, de forma literal e poética. É uma faixa que representa bem nosso jeito de trabalhar e pensar música: experimental, divertida e cheia de camadas, mas com sentimento genuíno.