Produtor de Luedji Luna, Kato Change conversa sobre jazz queniano e influências brasileiras

16/07/2025

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Por: Iarema Soares

Fotos: Divulgação

16/07/2025

Existem músicas que reconhecemos pelos primeiros acordes. “Banho de Folhas”, de Luedji Luna, é uma delas. A vibração e a energia dos primeiros segundos da memorável guitarra desta canção foram imprimidas pelo queniano Kato Change, de 31 anos. Morador da cidade de Nairóbi, capital do Quênia, o músico e produtor tem quatro passagens pelo Brasil, duas somente para desenvolver trabalhos com a cantora baiana, incluindo a produção musical do álbum Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água (2022).


Change é multi. Vai do rock ao hip-hop, sem deixar de beber do afro-house, para transformar tudo isso em um jazz só seu. Um som que mistura excertos de cada um dos gêneros para adicionar ainda, posteriormente, outros elementos da música africana. Ele escuta, colabora, une, soma e depois compartilha com o mundo o que foi construído. 

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Aos 18 anos, Change caiu na estrada pela primeira vez para acompanhar uma cantora de jazz queniana. A partir daí, emendou participações em diversos projetos. Tocou em uma banda de um talk show do seu país. Depois, integrou a banda de apoio de um programa de show de talentos do Quênia por dois anos enquanto fazia tours com outros artistas. Por cinco anos, participou do Coke Studio Africa, programa que reúne os maiores artistas do continente africano para trabalharem juntos. Também produziu vários artistas e passou pela América e pela Europa para realizar residências artísticas e shows. 

Morando em seu país natal, Change é um construtor de pontes. Ele deixa muito de si em cada parceria e, destas conexões criadas, é extraído o que é necessário para que o próximo passo seja dado, para que uma nova barreira seja dissolvida, para que uma outra África e um outro Quênia habitem o imaginário social mundial. 

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Você estudou Jornalismo e Business, como você acabou seguindo o caminho da música?

Eu estudei, aproximadamente, um ano e meio de Jornalismo e Business, mas não cheguei a concluir, em 2012. Porém, eu comecei a tocar música quando eu era muito pequeno, com uns 10 anos. Eu tocava violino na orquestra da minha escola. Mas, então, eu acabei escolhendo a guitarra um tempo depois, porque meu pai tinha uma guitarra artesenal, mas nunca a tocou. Quando tinha 14 anos, encontrei esse instrumento perdido na nossa casa, a consertei e comecei a aprender. Naquela época, o YouTube não era tão presente assim e eu comecei a fazer meus primeiros acordes sozinho.

Posteriormente, toquei na igreja por uns três anos e, depois, me juntei aos meus primos, ainda na adolescência, em uma banda de hard rock. E comecei a amar tocar esse gênero, que, antes, eu nem sabia o que realmente era. Eu me candidatei para a Escola de Música de Berklee, nos Estados Unidos, fui aprovado, mas não podia arcar com todos os custos. Foi aí que acabei parando no Jornalismo, porque meus pais disseram que eu deveria estudar alguma outra coisa.

Mas não funcionou para mim, porque — já aos 18 anos — uma cantora de jazz disse que gostava como eu fazia soar a guitarra, e gostaria de fazer uma tour comigo em diversos países da África. Depois disso, muitas oportunidades de novas tours, participações em projetos de música e de residências artísticas fora do Quênia e em outros continentes apareceram para mim, e eu acabei seguindo-as. O que foi ótimo, porque tem dado certo até agora. 

Como e quando você descobriu o jazz? 

Meu amor pelo jazz é muito fruto da influência do meu pai. Tínhamos muitos CDs e LPs de jazz espalhados pela casa, meu pai escutava esses grandes nomes do gênero e eu acabava escutando junto. O Quênia realmente não é um país conhecido pelo jazz, na verdade, não somos conhecidos na cena internacional da música. Contudo, a nossa comunidade de musicistas é muito, muito boa, incluindo os que atuam na cena do jazz.

Eu cresci ouvindo esses nomes quenianos do jazz e, por volta dos 20 anos, estar com eles no palco, tocando, fez meu amor por esse estilo crescer ainda mais, sempre escutei diversos estilos de música, mas o jazz sempre esteve no meu coração. Sempre que viajava, eu me encontrava em algum clube de jazz. Mas é curioso que eu sempre acabo misturando este estilo, ou até mesmo o rock e hip-hop – que são gêneros que gosto bastante, com a música africana. Acredito que isso faça com que eu soe diferente.

Eu sou extremamente aberto a aprender música com outras pessoas, mas o que me é apresentado eu mesclo com as minhas origens, porque a música africana é a minha base, eu sou uma pessoa africana e essa fusão é o que me constitui como artista e como produtor. 

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Fala mais sobre as suas referências musicais, quem são? 

No que tange as produções brasileiras, eu gosto de muitos artistas e gêneros: samba, pagode, MPB, samba de roda, músicas de candomblé… Inclusive, durante o tempo em que passei em São Paulo, aprendi a tocar pandeiro. Trouxe para o Quênia e as pessoas ficaram encantadas com o som e com a forma como ele é tocado. 

Sou fã de Racionais MC’s, Elza Soares, Gilberto Gil, Michel Pipoquinha, entre outros… O Brasil é um celeiro de artistas grandiosos e é insana a quantidade de grandes músicos que existem neste país. Essa é uma das coisas que me faz amar o Brasil porque esse mistura de grandes artistas e sonoridades faz com que a harmonia das canções seja complexa, vasta e bonita. 

Entre outras referências, gosto muito de um guitarrista de Benin, que mora nos EUA, chamado Lionel Loueke. Kola Ogunkoya, Ayub Ogada, que tocava nyatiti [instrumento com cinco a oito cordas característico do Quênia]. Ogada é uma das minhas grandes influências aqui, porque eu toco a minha guitarra como uma mistura do nyatiti e do corá [espécie de harpa-alaúde de 21 cordas muito utilizada por diferentes culturas da África ocidental].

Em 2015, você lançou seu álbum The Change Experience. Como foi o processo de criação deste trabalho e o que você levou em consideração na hora da escolha das parcerias?

The Change Experience (2015), foi incrível, porque convidei diferentes artistas para o álbum, não somente do Quênia, mas da África. Foi bem desafiador fazer este trabalho, até porque gravar o primeiro álbum é algo muito poderoso, já que a gente está mostrando para o mundo quem somos e o que somos enquanto artistas. Eu convidei diferentes músicos, com os quais tive oportunidade de trabalhar antes de fazer o The Change Experience, para criar esse trabalho, que eu queria que realmente mostrasse como a música africana pode ser misturada com diferentes gêneros musicais, mas, ainda assim, de forma muito rica e centrada em nossa cultura. 

Meu objetivo era tentar criar a experiência de algo que crescesse. Quer dizer, que fosse desde o acústico até o afro-house das músicas de festa. E o álbum tem muitas mensagens, as principais delas são as ideias de esperança, do conceito de crescimento individual e pessoal como algo melhor para nós mesmos, mas também para o coletivo, e quis ressaltar ainda o orgulho de ser africano. 

Gravei muitos outros álbuns que não lancei ainda, porque estive envolvido com tours, parcerias musicais, como esta com Luedji. Em 2020, lancei meu primeiro EP em parceria com outros dois artistas — Winyo e SURAJ — num projeto de afro-house, o que foi uma experiência muito fascinante. Entretanto, agora, estou trabalhando em um álbum de hip-hop que é uma colaboração entre músicos quenianos e brasileiros. 

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Como é a cena musical do Quênia?

A cena musical aqui é bem vasta, temos 45 etnias diferentes espalhadas pelo país e todas falam línguas diferentes, além dos idiomas base do Quênia que são o inglês e o suaíli. Fala-se ainda sheng, língua que foi criada e é usada pela população mais jovem. Tudo isso contribuiu para que tenhamos uma cena musical com diversas faces.

Recentemente, surgiu no Quênia um ritmo semelhante ao funk brasileiro, mas temos uma comunidade de jazzistas, de fãs de R&B e de hip-hop. Aqui é possível encontrar todos os gêneros musicais, mas em uma escala menor de fãs e artistas, porque os moradores do país escutam mais a música produzida por artistas de fora do que as feitas por cantores e musicistas quenianos. Logo, é muito difícil para os nativos emplacarem e fazerem sucesso dentro do nosso próprio país. 

E isso funciona como uma espécie de reação em cadeia. Como não somos ouvidos pelo público local, as grandes gravadoras não têm interesse no que é feito aqui e isso também é muito incentivado pelos governantes do Quênia que extinguiram o ensino de música das escolas públicas há 20 anos. Isso é uma perda enorme porque inibe a formação de gerações de artistas e a real profissionalização do setor, porque a grande maioria não é formalmente treinada, por exemplo, o que impede até mesmo a leitura de partituras e atrapalha o desenvolvimento da música local. Acredito que tira ainda a oportunidade de as crianças terem uma educação musical, o que os daria uma formação mais humanística. 

Como foi esse primeiro encontro com Luedji? E como vocês tiveram a oportunidade de trabalharem juntos em Um Corpo no Mundo, o primeiro disco dela?

Nos conhecemos logo na minha primeira passagem pelo Brasil, em 2017. Eu havia ingressado na residência artística do Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica, na Bahia. Morei lá por três meses. Em uma das apresentações abertas deste projeto, conheci a cineasta Falani Africa que disse que eu precisava conhecer uma artista brasileira antes de voltar pro Quênia. Alguns dias depois fomos apresentados, Luedji e eu tocamos no estúdio e ela me convidou para compor a banda dela em duas apresentações que estavam marcadas. Foi uma experiência incrível.

Na época, ela estava angariando fundos para gravar Um Corpo no Mundo. Quando o dinheiro foi reunido – ainda em 2017 -, Luedji me convidou para voltar ao Brasil para gravarmos o álbum. Foi tudo muito fluido, gravamos o disco em três dias, apesar de termos reservado nove dias em estúdio. Pouco tempo depois, descobri que ela estourou no Brasil e fiquei muito feliz, porque Luedji é uma artista sensacional.

Em 2018, entrei com ela e o restante da banda em uma tour com Um Corpo no Mundo e passamos por 17 estados brasileiros. No ano seguinte, nos apresentamos na Europa e no Quênia, o que foi muito especial, porque era a primeira vez de todos da banda em um país africano. Foi uma experiência muito potente e espiritual por serem todos frutos desta diáspora. 

No primeiro álbum de Luedji, você era o guitarrista. Neste segundo disco, o Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água, além de ficar responsável por este instrumento, você também assinou como produtor musical. Como foi trabalhar nesta frente?

Foi muito desafiador. Eu produzi alguns artistas em meu país, me identifico como produtor, mas nunca tinha produzido um álbum inteiro, muito menos sendo produtor musical,  guitarrista e líder dos músicos. Mas eu decidi topar o desafio e misturei uma vontade dela com algo que eu tinha a oferecer. Luedji queria trabalhar com musicistas africanos e sugeri que trabalhássemos com minha banda no Quênia, até porque ela é composta por pessoas de diversos países da África, há pessoas de Madagascar, Burundi etc.

Conseguimos reunir todos no Quênia, ela veio para cá também e gravamos as partes principais do álbum em janeiro e fevereiro de 2020, antes do mundo virar de cabeça pra baixo de vez. Algumas outras seções do disco foram feitas em São Paulo. Eu deveria acompanhar a mixagem e ter ido embora, mas o Coronavírus se alastrou de vez e fiquei sem poder sair de São Paulo por sete meses. Eu não sabia se conseguiria manter o aluguel, mas felizmente encontrei pessoas muito especiais e uma delas me levou a um estúdio de artistas, que também é uma casa. Deste espaço, via chamada de vídeo, finalizamos e lançamos o álbum, mas sempre tendo a Luedji fortemente envolvida em todos os processos.

Nós, praticamente, produzimos tudo juntos. Ela se envolveu na escolha da banda, local de gravação, arranjos, etc. Em meio a estas etapas de realização de um trabalho, às vezes, fica difícil encarar o momento de deixar o álbum ser encerrado e, finalmente, ganhar o mundo. Acredito que o deixamos partir no momento certo e ficamos felizes que as pessoas também acharam, tendo em vista a recepção que tivemos do público e também da crítica, o que nos levou à indicação ao Grammy Latino [na categoria “Melhor Álbum de Música Brasileira”].

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Durante essa sua estada forçada no Brasil, em função da pandemia, em 2020, você foi além da música e chegou a gravar o seu primeiro curta-metragem chamado Um sete sete zero. Nesta casa/estúdio, habitada por artistas negros, você conheceu a história desses indivíduos. O que lhe motivou a dar esse passo no audiovisual?

Mesmo em meio ao caos, eu sentia que precisava expressar o que eu atravessava do melhor jeito que eu pudesse fazer, por isso, teria que ser por meio da arte. Um dia, um dos moradores disse que iria grafitar a parte externa do estúdio e pedi para gravar os bastidores disso enquanto ele trabalhava. E fiz algumas perguntas sobre arte e a trajetória dele. Isso foi o suficiente para eu seguir em frente e saber mais sobre a história de vida das outras pessoas que também moravam lá, porque eles tinham vivências diferentes, produziam arte distintas umas das outras.

No seu curta-metragem, você perguntou aos artistas o motivo pelo qual a arte produzida por estas pessoas era importante. Agora, eu lhe devolvo o questionamento. 

Entendo agora que essa pergunta que eu elaborei é fácil de ser perguntada, mas bem complicada de ser respondida… Minha arte fala sobre África e mostra, mas também compartilha, minha cultura com o mundo. Fazendo isso, espero aproximar as pessoas, porque acredito que, quando você entende algo, fica mais fácil amá-lo. Quando desconhecemos ou não entendemos, nos deparamos com o ódio. Quando não nos conhecemos, não compreendemos a cultura, estética e modo de vida do outro, nos afastamos. Sinto que minha música conecta as pessoas. Por ser musicista e produtor musical, aproximo as pessoas, tento dissolver barreiras que possam existir. Por isso, minha arte é importante.

E que tipo de semelhanças e diferenças você consegue traçar entre o Brasil e o Quênia no que diz respeito à cultura e à sociedade?

A grande diferença, sem dúvida, diz respeito à raça e, consequentemente, ao racismo. Já que, no Quênia, a imensa maioria das pessoas é formada por indivíduos negros, eu nunca havia experimentado o racismo. Foi muito chocante ver como as pessoas negras são oprimidas em detrimento das brancas no Brasil. 

Porém, tem coisas bobas das nossas culturas que são muito semelhantes, como o péssimo modo como damos direções para quem pede ajuda para chegar em um endereço. E reparei que brasileiros e quenianos têm uma relação delicada com o relógio, estamos sempre atrasados, mas isso não é visto como um grande problema nem no Quênia nem no Brasil, costumo brincar que é quase um modo de vida. 

Dependendo do estado em que se está no Brasil, como a Bahia, encontramos a mesma receptividade oferecida pelos quenianos aos estrangeiros. Mas, como disse, não são todos os estados que encontramos pessoas calorosas. Quando fiquei sete meses preso em São Paulo devido à pandemia, percebi que esta cidade é bem menos acolhedora, mais áspera para os africanos, e tem bastante branca. 

Uma grande diferença cultural é o idioma. Para mim, estar em um local onde a maioria da população não fala inglês ou suaíli foi bastante desafiador, porque isso cria um vão comunicacional bem grande. Acredito que, por isso, é difícil conectar as culturas dos dois países. Mas, enfim, podemos não entender o idioma, mas captamos o sentimento uns dos outros e isso também é essencial. 

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16/07/2025

Jornalista e feminista interseccional.
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Iarema Soares