Enquanto brinquedos entretinham outras crianças, eram os instrumentos musicais que fisgavam a atenção de Melly sem que ela visse a hora passar. Assim a cantora e compositora baiana de 23 anos se recorda de como a sua história se entrelaçou à música.
O ambiente em que cresceu era propício para que isso acontecesse. Em casa, os rastros da relação do pai, Tito Araújo, com o meio musical estavam por toda a parte. Lá também era o estúdio dele, que tocava em bandas de samba-reggae e partido alto. Uma de suas apresentações marca a primeira vez em que Melly subiu ao palco, com apenas seis anos. Ela tocou uma flauta que não estava conectada a nenhum equipamento, mas só o fato de estar ali despertou algo nela.
Com o incentivo do pai, começou a aprender a tocar piano, e os estudos de violão vieram um pouco mais tarde. Foi também nessa época que ela esbarrou na artista que viria a ser uma das maiores influências do seu trabalho: Amy Winehouse, grande nome do soul e R&B, gêneros que fazem parte da mistura da sonoridade de Melly, ao lado de ritmos da música baiana, como ijexá, pagodão e samba-reggae.
Além das marcas no som, Melly carrega uma lembrança da cantora britânica na própria pele. “Uma das tatuagens que eu tenho é igual à tatuagem que ela [Amy Winehouse] tinha no braço. Isso me chamou a atenção quando a assisti pela primeira vez, quando eu era pequena. E aí agora, que tenho a idade, eu fiz. Então tá bem aqui”, diz enquanto aponta para dois corações na altura do ombro.
Microfone ligado
Antes de lançar sua primeira música, em 2018, Melly começou a se apresentar em bares. A primeira dessas experiências teve como cenário a capital do Rio Grande do Norte, onde ela morou por cinco anos.
“Natal foi um grande aprendizado. Esse foi o momento da vida em que eu mais fiquei sozinha, da adolescência até a fase adulta, dos 15 até os 20. Então, muitas experiências importantes e primeiras vezes aconteceram lá”, reflete.
Embora tenha ficado longe da Bahia por um tempo, esse afastamento apenas evidenciou para Melly a importância das suas raízes soteropolitanas. “Me fez perceber que eu me identificava com o que eu cresci habituada. Não que o novo universo não fosse interessante, em Natal também ferve arte, lá tem muitos artistas interessantes, mas me fez sentir saudades.”
Jau, seu conterrâneo, era um dos nomes frequentes nos repertórios que Melly apresentava ao público nas noites natalenses. Além das canções dele, ela cantava músicas de Djavan, Marisa Monte e Tim Maia, assim como os hits “Downtown”, de Anitta com J Balvin; “Envolvidão”, de Rael; e “Valerie”, de Amy Winehouse. Uma artista, no entanto, saiu dos setlists de Melly e se tornou sua colaboradora: Liniker.
Em janeiro de 2025, as duas estiveram juntas num show na Casa Natura Musical, em São Paulo. Lembrando dos tempos de barzinhos, Melly chamou Liniker para cantar faixas como “Caeu” e “Bem Bom”, de Liniker e os Caramelows, e “Mel”, da estreia solo da paulista. As parcerias que as duas lançaram em 2024, “Papo de Edredom” e “10 Minutos”, também tiveram espaço.
Sufixo de intensidade
“Já que é pra falar de amor / vou começar com o que acabou agora”, sem rodeios, os versos que abrem Amaríssima (2024), disco de estreia de Melly, contextualizam a temática do trabalho: as dores de um relacionamento que não deu certo. Se fosse definida como um sabor, essa sensação incomodaria as papilas gustativas da mesma forma que o nome do álbum deixa a pista.
Melly encontrou a palavra “amaríssimo” – que significa “extremamente amargo” – lendo um poema, e então decidiu usá-la no título, com uma adaptação para o feminino. Outra história ainda mostra como a artista se preocupou em levar sua identidade para o álbum, como se fosse uma 3×4 de si mesma e dos laços que a tornam quem é. Na capa, a caligrafia da avó de Melly estampa o rosto da neta. Amaríssima é escrito nos contornos abaixo do seu olho direito.
“Por ser meu primeiro disco, eu queria que fosse muito especial. E uma das minhas referências de vida é a minha avó”, compartilha. “Ela passou por bastante coisa durante a vida dela e, ainda assim, atingiu todos os seus objetivos. Eu me espelho nessa força e nessa capacidade de acreditar. Para eternizar a memória dela, de força e de ímpeto, decidi botar Amaríssima logo no rosto.”
Ler o nome do disco é sinônimo de encarar o olhar destemido de Melly, algo que combina com a atitude necessária para viver as típicas descobertas do começo da fase adulta, elemento marcante nas composições.
Quase todas as 12 faixas foram escritas em 2023, com exceção de “Rio Vermelho”, que teve sua primeira versão feita em 2020, durante a pandemia. A música ganhou uma nova roupagem quando Melly convidou Russo Passapusso para participar dela.
O vínculo entre os dois vai além dessa canção. O estúdio do líder do BaianaSystem fica no bairro do Rio Vermelho, uma das regiões mais efervescentes de Salvador, e foi lá que Melly gravou e co-produziu Amaríssima, além de assinar a direção musical do disco.
Lançado em maio de 2024, o álbum consolidou as previsões da crítica que Melly seria um dos nomes mais promissores da cena contemporânea. Concorrendo com Carol Biazin, KayBlack, Nadson O Ferinha, Thiago Pantaleão e Veigh, a baiana se sobressaiu no prêmio de Artista Revelação do Multishow 2023. À época, sua discografia tinha apenas o EP Azul (2021), mas ela já fazia barulho com o single de mesmo nome e músicas como “Nêga” e “AluSina”.
No WME 2024, com Amaríssima tendo apenas alguns meses de vida, Melly foi lembrada nas categorias Compositora e Música Alternativa, com “10 Minutos”, sua parceria com Liniker. A vitória veio pela sua escrita. O Grammy Latino 2024 também reconheceu o impacto do disco, com uma nomeação a Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa.
Em 2025, Amaríssima ganha novos desdobramentos, numa edição de remixes que vai incluir uma nova faixa, em colaboração com Duda Beat. “Eu fiquei muito feliz, até porque já era admiradora do trabalho dela há tempos”, conta. Se no disco de estreia Melly participou ativamente de diversas fases da feitura do disco, a ideia é que nessa versão ela tome alguns passos para trás.
“Dessa vez, a gravadora pensou em deixar algumas pessoas interpretarem o disco com a sensibilidade delas, com a inspiração delas. A gente selecionou alguns colegas, artistas e produtores que eu admiro para poder tirar um pouquinho do meu controle. Esse disco remix é uma tentativa de perder o controle.”
Reflexos
Da mesma forma que Melly enxerga conexões entre o seu trabalho e o de outros artistas, o movimento inverso começa a se tornar cada vez mais frequente. Fazendo coro a Liniker, que chamou a baiana para Caju, BK e Rashid são dois dos nomes com quem ela colaborou recentemente.
Em Portal (2024), disco do rapper paulistano, Melly participa da faixa “Levante”. “O nosso encontro foi tão legal. A gente conversou sobre o tema do disco dele, sobre o assunto da música, enxergar novos mundos, novas possibilidades. Esse portal. E aí, de forma bem fluida, compomos essa canção. O resultado ficou lindo, amei fazer parte.”
Em “Levante”, cantam juntos: “Hey, um banho de ervas tomei, pedindo pra me proteger / buscando uma força que só você pode ter”. O trecho remete à espiritualidade e aos elos ancestrais dos quais Melly tem se aproximado, profissional e pessoalmente.
Uma das partes mais performáticas de seus shows é quando ela traz o arco de Oxóssi para o palco. E fora dele, tem mergulhado em entender o que não fazia muito sentido para ela quando era mais nova.
“Em Salvador, depois de algumas pesquisas e de alguns livros lidos, eu comecei a ampliar a minha visão sobre a minha ancestralidade”, diz. “Estou me amparando no que está para além de nós, nesse universo inteligível que a gente não enxerga, mas que tudo que acontece lá acontece aqui também. Então, agora a minha música tem mais movimento com a espiritualidade, minha postura também.”
*Esta matéria foi publicada originalmente na revista Noize 94 que acompanha o disco Portal, de Rashid, lançado pelo Noize Record Club.