Há momentos da vida que testam a nossa fé. Nos últimos anos, Rashid viveu montanhas russas emocionais que impactaram na forma como vê o mundo. Após ter dois shows cancelados no festival Lollapalooza, perder o pai e ver a esposa doente, ele voltou à espiritualidade e à arte para dar sentido à vida. Nesse meio do caminho, deu início ao capítulo mais importante da sua trajetória: a paternidade.
Não à toa, o artista foi atravessado por sentimentos que deram luz ao disco Portal, quinto disco da carreira de 15 anos. O rimador, que começou na Batalha do Santa Cruz, em São Paulo, percorreu longas distâncias até se reencontrar com o moleque munido do sonho de vencer na vida. “Fiz o disco para a minha criança interior, para o Rashid que começou a fazer música”, explica o rapper.
“Tentei ser menos racional, menos burocrático, para que a arte seja leve e prazerosa. Quis me libertar das expectativas de como as pessoas vão receber o trabalho.” Na busca por uma abordagem mais livre, ele se reconectou com a música brasileira, o pagode e a bagagem mineira da família, ao evocar ecos de Clube da Esquina e Milton Nascimento na sonoridade do registro.
“O Portal é um símbolo da maturidade que se manifesta de formas diferentes. Ninguém duvida da maturidade do Mano Brown, seja fazendo o rap pesado dos Racionais ou no Boogie Naipe (2016)”, reflete sobre fase de vida. Aos 36 anos, Rashid tem consciência do valor das conquistas, mas ainda pulsa criativamente para outras direções.
“Tudo gira em torno da busca por quem eu sou. A maturidade se expressa em saber usar as plataformas que tenho, conseguir flutuar pelas coisas que amo, manter o discurso afinado, não só a parte política mas as suas ideias, postura, posicionamento e a forma que você se expressa.”

Em Mama’s Gun (2000), Erykah Badu fez um disco pensando no filho, então as músicas trazem lições que ela gostaria de passar para ele no futuro. Vejo conexões desse disco com Portal. De que maneiras a paternidade mudou a rota do projeto?
Acho louco porque o disco não é exatamente sobre isso, mas é um assunto inevitável até porque tenho uma música batizada com o nome do meu filho, “Cairo”. Recebi muitas mensagens de mães dizendo que se identificaram com o meu trabalho. Acho interessante por ser um lugar incomum no rap, vimos mais MCs mulheres acessando esses lugares emocionais. Sempre falei das minhas emoções no meu trabalho, pois tento gerar identificação a partir de algo pessoal, então não tinha como esse disco não refletir a experiência de me tornar pai. Muitas das questões levantadas partem desses pontos: “e agora? Como você vai criar o seu filho? Que tipo de pai vou ser?”. De certa forma, acho que falar dos portais que atravessei – a espiritualidade, relação com dinheiro e amizades –, foi a forma que encontrei de criar um mapa que deixo para o meu filho quando ele tiver a compreensão de captar essas mensagens. É um mapa para mim, para as pessoas que me escutam – e para ele.
Como as aflições sobre o futuro permeiam o trabalho?
Vi uma entrevista do Kendrick Lamar em que ele dizia que faz música para trazer mais perguntas do que respostas e para se colocar ao lado do público. Me identifiquei com isso porque imagino a minha música como companheira das pessoas. Não sei se a função do artista é responder alguma coisa. Muitas vezes, quem está te escutando também compartilha dessas dúvidas, então por ela não se sentir mais sozinha no mundo já traz algum alívio. Até porque a gente pode nem estar pronto para ter as respostas que o universo nos traz. A maturidade e a paternidade me trouxeram novas questões e comecei a esboçar algumas respostas, mas esse processo acontece com o tempo. Com 30 anos, respondi o que eu buscava com 15. O Rashid de 36 procura a pessoa que era aos 19. “Cadê aquele moleque?”. Preciso do espírito de aventura não só no trabalho e na arte, mas na vida.

A princípio, a ideia era fazer um EP que se tornou um álbum. Como aconteceu a maturação de ideias?
Sempre fui muito noiado de organização, mas vivia a pós-pandemia, estava me sentindo perdido. Um amigo falou que fazer música era um processo vivo e fiquei com isso na cabeça. O Portal foi mais um desses processos vivos. “Frustração” é a música mais antiga, mas ela foi a última a entrar. Tinha a ideia de fazer um EP como apêndice do disco anterior, Movimento Rápido dos Olhos (2022), mas quando comecei a rabiscar, percebi que estava indo para um lugar diferente. Quando surgiu “Depois do Depois”, entendi que era algo independente. “Cairo” também estava encaminhada e não encaixava com a ideia inicial. As coisas começaram a ganhar um novo corpo e uma nova espinha dorsal surgiu. Eu fiz as mais novas, e depois observei que algumas coisas antigas podiam se encaixar nisso. Esse é o valor da gaveta, né?
Em que momento do processo do disco você delimitou quem seriam os feats?
Tal música soa como tal pessoa. E se eu chamasse a Melly para cantar na música que parece com ela? Aconteceu a mesma coisa com Lenine, Pericão e Lagum. Na música do Péricles, falava para os produtores que tinha dois extremos para “Um Tom de Azul”, que é uma música com pegada meio blues, pois tem o lamento no refrão. Ou a gente iria para esse lado do blues ou uma voz meio de rua, uma coisa Cássia Eller. Falei com o Péricles e ele topou. É uma honra enorme ter feito som com essas pessoas. A sonoridade motiva a pessoa a participar. Raramente penso na participação antes de fazer a música, a não ser que a gente crie junto, como a minha música com o Mano Brown (“Ruaterapia”, de 2016).

Para além do rap, quem são os artistas que te inspiram?
A pessoa que tem dúvidas não é o super-herói, aquele que talvez o público busque no artista. Artistas que me passam uma emoção semelhante seriam Cartola, Bob Marley, Djavan, Gilberto Gil, pessoas que tem muitas perguntas, então a música surge da curiosidade. Por que certas coisas estão acontecendo? Onde vamos parar com isso? Tentei me levar para esse lugar. Faço rap, uma arte muito competitiva, especialmente para mim que veio das batalhas. Você vê as pessoas reagindo à sua rima, analisando a sua técnica e a sua punchline. Isso é um ponto delicado, mas enxergo maturidade em me desprender dessa lógica para tentar me colocar ao lado do ouvinte. Não só na camada de emoção, mas de reflexão, da busca pela compreensão das maiores coisas da vida. A técnica continua importante, é legal fazer rimas que as pessoas vão cair pra trás, mas enxergo maturidade em abandonar isso. Como os meus mestres falariam de tais coisas? Por conta disso, Portal tem mais melodias do que os meus outros discos. Me inspirei nos grandes refrões da música brasileira e do pagode. Busquei nesses lugares outras formas de me comunicar, sem deixar o Rashid rimador de lado.
Você mencionou que esse disco tem mais melodias. Qual foi o ponto de virada para encontrar a sonoridade das músicas?
Fui buscar referências nas coisas que ouço a vida inteira, mas sentia que não estavam tão presentes nos meus discos. No Movimento Rápido dos Olhos (2022) permito que certas coisas aflorem mais. Uma ou outra dava luz às pessoas do que o Rashid estuda de música. Muito Milton Nascimento, Gil, Cartola, Paulinho da Viola, samba… Precisava deixar esse lado aflorar para fazer algo diferente do que já fiz. Em “Frustração”, pensei em “Um girassol da cor do seu cabelo”, do Clube da Esquina (1972). Buscava aquele piano com sonoridade dos anos 1970. Mandei para os produtores, Grou e Bernardo Massot, e falei: “a função de vocês é trazer a textura, a emoção e a vida do piano dessa música. As coisas foram para um lado melódico porque deixamos a criatividade fluir, sem pensar demais. Geralmente, ia para o lugar onde achava que tinha que estar, mas no Portal, fui para os lugares que sentia que deveria ir.

O álbum pode ser considerado um retorno às suas referências musicais fora do hip hop?
Tenho uma coisa muito forte com Milton Nascimento e Clube da Esquina por causa da vivência de Minas Gerais. Sou de São Paulo, mas cresci lá, passei muitas horas da minha vida na Fernão Dias, olhando para as montanhas. Então me interesso por essa coisa contemplativa da obra do Milton, caiu a ficha quando entendi que a música soa como um retrato das montanhas de Minas Gerais. Comecei a buscar esse tipo de emoção no meu trabalho, que é uma coisa um pouco diferente do rap. Nunca vai deixar de ser rap porque tem ritmo e poesia, ele ainda está ali. Algumas pessoas estranharam quando ouviram o disco, mas está tudo lá, só estou deixando outras partes de mim fazerem parte. Se eu não trouxesse isso em algum momento, a minha obra estaria incompleta.
Como você enxerga as conexões com Milton Nascimento?
Sempre revisito as entidades da música brasileira, vou pesquisando de pouquinho a pouquinho. Milton, Caetano, Gil, Chico, esses caras tem uma obra muito extensa. O Clube da Esquina é um dos meus discos prediletos da vida. Ele tem essa pureza e ingenuidade do povo mineiro, algo que também sinto no Cartola. Sinto que eles transmitem a sensação de que a vida é boa, vamos procurar as coisas boas da vida. A ingenuidade no sentido de acreditar nisso de verdade. Já citei algumas vezes que a minha avó falava que conheceu o Milton porque ela é de Três Pontas, cidade onde Milton foi criado. Estava lendo a biografia dele da Maria Dolores, e em certo momento ela fala que ele vai visitar uma fazenda em Carmo da Cachoeira, um lugar que cresci escutando histórias pelos meus avós. Quando estava em Minas, perguntei para a minha mãe e ela disse que a minha avó cresceu nessa fazenda. A gente começou uma investigação. A minha avó foi adotada e vivia na Fazenda Couro do Cervo. Os pais do meu avô também moravam lá, então eles se conheceram por lá. O Milton visitava aquele lugar porque os donos eram tios do Wagner Tiso. Se eu tiver a oportunidade, quero perguntar para o Milton se ele lembra da Terezinha. A história começou a fazer muito sentido. Depois que li a biografia, fiquei fascinado depois desse laço. Não sei se é notável a presença do Milton e do Clube nos meus discos até Portal, mas a partir daqui, essa será a sonoridade que sempre estará na minha música. Não significa que não vai ter mais o Rashid Pesadão ou as músicas de relacionamento, mas essas coisas terão novos elementos.

Como a sua família influenciou a sua bagagem musical?
Não dá pra dizer que o Milton é um artista lado B. Porque não é lado B, ele é gigantesco. Mas entre as coisas de rádio, não era tão presente. A gente ouvia as músicas mais famosas em casa. O meu avô era quem escutava mais música. Era muito sertanejo raiz, moda de viola, Tião Carreiro & Pardinho. Vejo semelhanças com as histórias que o rap conta, mas de uma outra forma porque são histórias da roça. A minha música mescla o interior com a periferia de São Paulo. Por que não aproximar esses dois universos? Os meus pais se separam há muito tempo, lembro do meu pai escutando rock, foi ele que me apresentou Tim Maia. Ele tinha os dois primeiros volumes da Espaço Rap, achava a coisa mais aleatória. Eu não fazia ideia do que significava, mas cantava “fogo na bomba!”. Na casa da minha mãe era muito pagode. Na zona Leste, em Arthur Alvim, as minhas tias limpando a casa no sabadão, eu querendo ver desenho e o pagodão comendo solto. A minha mãe gostava muito de r’n’b americano, Al Green, Whitney Houston… Não sei se é papo de artista que fica mais velho, mas acho que o caminho natural é buscar uma coisa que é sua, achar e valorizar o Brasil dentro disso tudo. Uma pena que demorei tanto tempo para conseguir encontrar. Já toquei fora várias vezes, percebo que o pessoal curte, mas lá eles tem o Jay-Z e o Nas. Só que quando você tem elementos originais na sua música, a coisa muda de lugar. “Tenho o Jay-Z mas ele não faz o que você está fazendo”. Acho que tem um valor enorme colocar elementos da nossa origem, não só para gringo ver, mas porque temos um tesouro nas mãos, que acabamos renegando por uma sonoridade parecida com o que os norte-americanos fazem.