Sampleados por Don L, o Pessoal do Ceará se mantém como joia rara da MPB

03/07/2025

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Por: Lucas Vieira

Fotos: Reprodução

03/07/2025

No final da década de 1960, uma nova geração de artistas se uniu no Ceará. Circulando em locais como a Universidade do Ceará e bares como Estoril e Bar do Anísio. Embora a noite de Fortaleza tenha sido importante para artistas como Belchior, Fagner, Téti, Fausto Nilo e Petrúcio Maia mostrarem suas composições e debater temas como política e cultura, o ambiente universitário teve papel essencial para a formação do grupo, como revela o artista plástico Mino: “Nós todos participávamos de movimentos estudantis. Na faculdade de Arquitetura, de Direito, de Engenharia, o pessoal se encontrava muito, tinha um movimento político muito bonito aqui no Ceará, que foi se transformando num movimento musical”. 

Quem também se recorda daquele momento em que o Brasil vivia sob a Ditadura Militar é Rodger Rogério, outro integrante da turma: “Foi uma coisa anárquica, não tínhamos intenção de fazer um movimento, a turma foi se juntando. Tenho lembranças boas dessa época, mas também havia muito medo. Lembro que nas reuniões sempre deixávamos uma caixa de som virada para a rua, para que não escutassem nossas conversas. Foi um período invocado”.

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Do Ceará para o Brasil

Foi no começo da década de 1970 que vários cearenses começaram a despontar no mercado fonográfico nacional, migrando para o Sudeste. Após uma temporada no seminário e outra na faculdade de medicina, Belchior se juntou aos amigos Fagner, Cirino e Jorge Mello no Rio de Janeiro em 1971. Naquele ano, o artista venceu, como compositor, o IV Festival Universitário da MPB, com “Na Hora do Almoço”, que saiu em um compacto dividido com o cantor Osny.

Em 1972, a dupla Fagner e Belchior teve duas parcerias gravadas: “Mucuripe”, por Elis Regina, e “Noves Fora”, por Wilson Simonal. Foi também neste ano que Fagner entrou em estúdio para a sua primeira gravação, participando da série Disco de Bolso, do jornal Pasquim. Em seguida, lançou dois compactos, um com o violonista Cirino, com as músicas “A Nova Conquista” e “Copa Luz”, e outro sozinho, que inclui a faixa “Cavalo-Ferro”. No ano seguinte, chegou às lojas seu álbum de estreia, Manera Fru-Fru, Manera (1973), que inclui a participação de Nara Leão.

O ano de 1973 também marcou o lançamento do primeiro compacto solo de Belchior, com as músicas “Sorry, Baby” e “A Palo Seco”. Em 1974 chegou às lojas seu primeiro álbum, com as canções “Todo Sujo de Batom” e “Mote e Glosa”. O LP não foi um sucesso de vendas, porém, em 1976 o artista conquistou projeção nacional como compositor, com as gravações inesquecíveis de Elis Regina para as músicas “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”. Belchior registrou na década de 1970 os discos mais cultuados de sua carreira. Além do LP de estreia, são do período os trabalhos Alucinação (1976), Coração Selvagem (1977) e Todos Os Sentidos (1978). Sua obra tem como marca canções de discurso direto que refletem sobre a sociedade e seu tempo, com sonoridade que flerta com o folk e o rock norte-americano, sem perder a essência cearense.

Já a carreira de Fagner na década de 1970 tem entre os destaques os LPs Ave Noturna (1975), Raimundo Fagner (1976) e Orós (1977), álbuns que trazem canções calcadas em ritmos brasileiros adornadas por elementos de rock, que resultaram em gravações com teor popular somado à sonoridade experimental. Além da sua obra, Fagner teve papel importante para a música do Ceará ao trabalhar como produtor da gravadora CBS na segunda metade dos anos 70, o que ajudou na entrada de artistas nordestinos no mercado, como os cearenses Amelinha e Ricardo Bezerra e os paraibanos Zé Ramalho e Elba Ramalho. Nesse período, a companhia chegou a ser apelidada de “Cearenses Bem Sucedidos”.

Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem

As primeiras gravações de sucesso abriram caminhos para outros artistas cearenses. Foi por indicação de Belchior, que havia se mudado para São Paulo em 1972, que os conterrâneos Ednardo, Rodger Rogério e Teti passaram a integrar o time musical do programa Proposta, apresentado por Júlio Lerner. Através das apresentações na TV, o trio conheceu Walter Silva, que produziu, na gravadora Continental, o histórico álbum coletivo Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem – Pessoal do Ceará (1973), relançado posteriormente com os títulos de Ednardo e o Pessoal do Ceará Ingazeiras.

Com sonoridade que misturou os arranjos orquestrais de Hareton Salvanini com musicalidade tipicamente nordestina e tempero psicodélico, esse disco trouxe repertório dividido pelos três artistas, incluindo faixas como “Palmas Para Dar Ibope”, “Susto” e “Curta-metragem”. Ao passar dos anos, o LP se tornou um título cultuado por apreciadores da MPB e colecionadores de discos. Sobre as recordações da gravação, Rodger comenta: “Me lembro do encantamento de estar gravando em uma grande gravadora, o sonho de todo compositor. Mesmo com vendas acima da média, nenhum de nós enriqueceu com o álbum, mas me recordo da resposta ser boa, tanto que em seguida surgiram outros convites”.

Rodger Rogério e Teti eram casados e se mudaram juntos para São Paulo, onde o cantor também lecionou na faculdade de Física da USP. Após gravar o LP coletivo, a dupla registrou mais um disco em parceria, o obscuro Chão Sagrado (1975), cuja sonoridade tem entre os destaques o som da sanfona, da viola e de percussões típicas da música nordestina. “Esse disco reflete o repertório que a gente vinha tocando na época. Combinamos com o Walter Silva de mantermos o Hareton Salvanini como arranjador e saiu um resultado que gostei muito. Foi um trabalho que não teve muita divulgação, tanto pela falta de incentivo da gravadora quanto por eu ter voltado para Fortaleza pra me dedicar à universidade”, conta Rodger. Teti assinou, também na década de 1970, um disco solo, Equatorial (1979). O LP divide canções aconchegantes com faixas dançantes, adornadas pelo timbre do piano elétrico e por arranjos de cordas e sopros, que servem de pano de fundo para sua voz de característica suave.

O Pavão Mysteriozo

Ednardo foi o artista de Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem que obteve maior sucesso no mercado. Além do álbum coletivo com Rodger e Teti, ele lançou cinco discos nos anos 70, com destaque para O Romance do Pavão Mysteriozo (1974), Berro (1976) e Cauim (1978). Ednardo é autor de clássicos atemporais como “Enquanto Engoma a Calça” e “Pavão Mysteriozo”, que se tornou conhecida como tema da novela Saramandaia (1976). Sua obra tem como marcas a presença da migração e das paisagens de Fortaleza nas letras, a produção de trilhas sonoras para o cinema e parcerias com compositores como Fausto Nilo, Tânia Araújo, Brandão e Augusto Pontes. A sonoridade de suas músicas tem como destaque a levada rítmica de seu violão, com influência do baião e do maracatu cearense.

Frevo Mulher

O Romance do Pavão Mysteriozo trouxe, na faixa “Ausência”, a participação de uma das principais vozes femininas da geração cearense dos anos 70: Amelinha. A artista tinha 19 anos quando conheceu o Pessoal do Ceará, frequentando os mesmos bares que a turma em Fortaleza. Já em São Paulo, para onde se mudou em 1970, integrou a banda Maresia e estreou no mercado no disco de Ednardo. Em 1975, por intermédio de Fagner, excursionou com Toquinho e Vinícius de Moraes pelo Uruguai. Com obra marcada por sua voz doce e gravações que abrangem diversos gêneros da música nordestina, Amelinha lançou em 1977 seu primeiro disco, Flor da Paisagem, com sonoridade refinada, porém pouco destaque no mercado. Na mesma década, gravou Frevo Mulher (1979), álbum que se destaca pelo repertório repleto de clássicos de compositores nordestinos, como “Galope Rasante” (Zé Ramalho), “Coito das Araras” (Cátia de França) e “Dia Branco” (Geraldo Azevedo e Rocha) e por sua ficha técnica com alguns dos maiores instrumentistas da música brasileira, incluindo Dominguinhos (sanfona), Oberdan Magalhães (sax soprano) e Pedro Osmar (viola).


Um pessoal novo

A ideia dos discos coletivos não se resumiu ao LP de 1973. Em 1977, com organização de Fagner, a CBS lançou Soro, que reuniu diversos artistas nordestinos, a maioria do Ceará, em álbum que incluiu música e poesia, além de projeto gráfico com 37 lâminas que traziam fotos, desenhos e textos dos participantes. Ferreira Gullar, Fausto Nilo, Abel Silva, Lena Trindade, Yeda Estergilda e Patativa do Assaré estão entre os nomes que fizeram parte do projeto.



Enquanto o Pessoal do Ceará conquistava a MPB no Sudeste, uma nova geração de artistas crescia em Fortaleza, insatisfeita pela falta de espaço para manifestarem sua arte na cidade. Para suprir a necessidade, os cantores e compositores veteranos se uniram aos jovens para organizar um evento que incentivasse as novas manifestações da arte cearense: a Massafeira Livre. Aos 18 anos, a cantora e jornalista Mona Gadelha foi uma das atrações da Massafeira. Autora do livro Perfume Azul – Rock e transgressão em Fortaleza nos anos 70 (2023), a artista recorda: “Tenho lembranças maravilhosas do evento, lembro de ficar conversando com Walter Franco. Tinha muito público e muita gente se apresentando também. É muito interessante pensar no pioneirismo desse festival multilinguagem sendo realizado na década de 1970 no Ceará, não era comum”.

A Massafeira Livre aconteceu durante quatro dias de março de 1979, no Theatro José de Alencar, e foi eternizada em estúdio através de disco duplo coletivo lançado em 1980, em gravação também inesquecível: “Foi uma coisa completamente inusitada: uma gravadora pegar 40 artistas do Nordeste, a maioria ainda bem jovem, fazendo a sua primeira experiência fonográfica, levar para o Sudeste e colocar todo mundo em um hotel”, conta Mona, que participa do LP com a canção “Cor de Sonho”. A ficha técnica é dividida por uma extensa lista de veteranos e iniciantes, entre eles Ednardo, Belchior, Lúcio Ricardo, Chico Pio e Ângela Linhares.

A história mostra que a colaboração mútua foi essencial para os artistas cearenses, porém, as relações nem sempre foram harmoniosas. Segundo o livro Apenas Um Rapaz Latino-americano (2017), biografia de Belchior escrita por Jotabê Medeiros, a alcunha de “Pessoal do Ceará” foi motivo de desentendimento entre os artistas, que eventualmente não concordaram com a forma como o termo foi utilizado. O livro também conta que o lançamento do LP Massafeira provocou atritos entre Ednardo e Fagner. Fagner, Ednardo e Amelinha foram procurados para esta matéria, mas não responderam às solicitações de entrevista. 

Sobre a dinâmica de relação entre os artistas do Ceará, Mino comenta: “O cearense não se aglutinou, quem mais quis impulsionar o grupo foi Ednardo. Eu fiquei muito amigo dele, de Fagner e de Belchior. Aqui eles têm o apelido de ‘os Três Reis Magros’, por serem magrelos. Alguns conterrâneos foram para o Rio, outros para São Paulo, fizeram carreira com uma bagagem mais definida para o Sudeste do que para Fortaleza. Teve também um pessoal que ficou aqui, alguns ficaram no passado. Nós não somos como os baianos, os baianos são mais juntos”.

Contudo, o legado desses artistas ecoa por gerações. O cantor Lucas Bezerra, um dos representantes da música cearense atual, reflete: “Minha geração tem o desafio de zelar pela memória. Temos o dever de interagir com atenção com o legado dos artistas cearenses dos anos 70, e boa parte deles continua ativa. Fagner, Belchior, Amelinha e Ednardo, por exemplo, granjearam uma projeção nacional. São todos maravilhosos, mas a lista não se esgota neles. Quero falar da emoção que me consome ao ouvir Rodger e Téti, Mona Gadelha e Ângela Linhares. Da beleza das palavras de Brandão e Augusto Pontes, da presença poética de Patativa, da amplitude da Massafeira, porque o legado dessa geração é diverso. Tudo isso é fonte inspiradora para o meu trabalho: na poesia, na estética, na sonoridade, nas possibilidades que eles abrem para a desconstrução de preceitos preconceituosos e estereotipados que apartam o ‘regional’ e o ‘nacional'”.

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