“Handycam”: em novo álbum de Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro, tudo vira cinema

01/10/2025

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Por: Revista NOIZE

Fotos: Divulgação/Helena Ramos

01/10/2025

Humano e político, em Handycam (2025) — álbum de Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro lançado nesta quarta-feira (1/10) — a intimidade e o mundo exterior se entrelaçam. Nas 11 faixas, a caneta da dupla vai do namoro e do cinema à guerra entre Israel e Palestina e o incêndio na Cinemateca, em 2021

O álbum nasce do desejo de documentar afetos, perdas, memórias, denúncias e utopias — como se fosse mesmo uma filmadora caseira captando o que há de mais cru e verdadeiro. Sonoramente, o trabalho transita entre o popular e o experimental, sem perder o frescor e autenticidade dos dois.

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Handycam (2025) consolida a parceria de Sophia — também Besouro Mulher e Uma Enorme Perda de Tempo — e Felipe — do Tangolo Mangos —, que começou no compacto Nova Era/Ohayo Saravá (2025), lançado pela parceria entre os selos Risco (Brasil) e Cuca Monga (Portugal).

Ambos os compositores se fortalecem em Handycam (2025), em um trabalho que não tem medo de ser crítico. Entre o luto por um amigo, a celebração de uma amizade, o amor que amadurece e a denúncia das guerras, o disco constrói um mosaico de experiências pessoais e coletivas.

Vale lembrar que, durante apresentação na Semana do Rock em São Paulo de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, a banda, ao demonstrar apoio ao povo palestino e se posicionar contrariamente ao presidente Donald Trump e da jornada 6×1, com imagens projetadas no telão, teve o show interrompido.

“Pediram para a gente parar de se manifestar politicamente e um funcionário arrancou o cabo que conectava o computador ao telão. Mais do que a repercussão do caso, queremos que as pautas censuradas ganhem ainda mais força”, esclareceu a banda, em publicação no Instagram, após o ocorrido.

Com o repertório, Sophia e Felipe já têm turnê marcada: o show de lançamento ocorre em São Paulo na Casa Natura (26/10), veja ingressos aqui. Antes o duo tem agenda cheia em Portugal, com shows em Porto (4/10), Coimbra (5/10), Barreiro (9/10), Guimarães (10/10) e Lisboa (11/10).

Com produção de Gui Toledo, baixo de Marcelo Cabral e bateria de Biel Basile, Handycam (2025) é um álbum completo, com letras de protesto, cinema e um toque de rebeldia. Ao final, deixa uma mensagem poderosa: quanto mais se vive, mais se entende que o saber é um processo contínuo.

E que, apesar dos buracos e tropeços da vida, ainda há espaço para encontros e imaginação. Sophia e Felipe se dividiram para elaborar este faixa a faixa exclusivo para a Noize, que você lê abaixo:

“Lungs Full Of Air”:

SOPHIA: Escrevi depois que um amigo meu faleceu, em 2021. Foi uma morte que mexeu muito comigo por vários motivos, mas principalmente porque ela foi “do nada”: ele simplesmente faleceu. Isso me fez pensar muito sobre a fragilidade que é viver, sobre como tudo está sempre tão perto de acabar.

Escolhi o inglês por essa característica direta que a língua tem. Além de não ter diferença entre “estar” e “ser”, como no português, as palavras ‘world’ e ‘word’ são muito parecidas — e eu tenho dificuldade de pronunciar sua diferença.

“Campo Minado“:

FELIPE: Eu falo sobre muita coisa ao mesmo tempo. Acho que essa música resulta dessa minha característica, também. Minha namorada é viciada em Campo Minado, o jogo de computador atemporal. Na época a gente nem namorava, mas eu entrei nessa pira de fazer uma canção meio dedicada ao jogo, meio dedicada a ela. Era uma forma até de disfarçar minha paixão, né? [risos].

No entanto, esse tema bélico que eu evoquei pelas características do jogo me levou pra outra perspectiva. Daí me veio a vontade de fechar a música indo pro lado material, pro cenário sangrento que inspirou o jogo: guerras, trincheiras e o campo minado enquanto tática militar.

Sou questionado por meus pares sobre a validez e funcionalidade dos “versos de protesto”. É sempre válido lembrar: as armas que matam na Palestina também matam no Brasil, em especial com os corpos periféricos que mais sofrem dentro do campo de atuação da polícia. Nossas guerras não são isoladas umas das outras, e tem gente historicamente lucrando com as duas.

“Cinema Total”:

SOPHIA: Surgiu num dia na praia. Fiz a parte do dedilhado e dos acordes e demorei bastante pra conseguir colocar letra… Até que um dia, de noite em 2022, na casa da minha mãe, eu estava com a minha namorada, e nós fomos improvisando e escrevendo juntas. Muitas vezes, no caminho da casa dela para o trabalho, íamos fazendo “ficções”, conversando sobre as coisas que tão acontecendo no mundo, mas também criando novos mundos. E acho que isso tem muito a ver com o cinema.

FELIPE: Essa já me levou às lágrimas algumas vezes. Desde os primeiros ensaios, percebemos a verve doce e violeira, com nós dois segurando a base na guitarra, tocando coisas levemente diferentes, mas complementares. Sempre senti “Três Meninas do Brasil”, de Moraes Moreira, nessa faixa.

“Cinema Brasileiro”:

SOPHIA: É uma parceria minha com os meninos do Enorme Perda de Tempo (Téo Serson, Theo Cecato e Vicente Tassara). Bem loucos em um sítio, abri o celular e vi a notícia do incêndio na Cinemateca. Fiquei arrasada. No improviso, mandei a frase: “O cinema brasileiro tá pegando fogo e eu estou pegando fogo pelo cinema brasileiro”.

Ficamos nessa brincadeira de falar uma frase e completar. A música original tinha 14 minutos. Gosto dela vir depois de “Cinema Total” porque ela dá um punch e dá uma outra característica do cinema. Tinha medo da música “Cinema Total” ficar num clima muito escapista ou ingênuo, e por isso ela fica esmagada entre “Campo Minado” e “Cinema Brasileiro” no disco.

FELIPE: Adoro ter duas faixas com “cinema” no nome. Você vai ouvindo e sentindo que é um texto conceitual sobre o cinema brasileiro, quando na real é um disfarce pra falar de paixão. E nisso a música ganha duas musas: o cinema brasileiro em si e a menina que deixou o eu lírico apaixonado.

Pelo bem ou mal, eu como baiano egresso da faculdade de Comunicação da UFBA acabo relacionando isso tudo – essa música, o nome do disco, a ideia da manualidade – com Glauber Rocha e o mote do cinema novo “câmera na mão, ideia na cabeça”. Quando So me mostrou, ela era uma espécie de ijexá invertido, ela ganhou um quê de rock clássico, Rolling Stones. Acho que reflete nosso processo ali no estúdio: ouvir juntos referências pra alimentar as ideias.

“Já Não Me Sinto Tão Só (Para Julia Zen)”:

FELIPE: Essa música tem nome e endereço bem definidos. Foi composta sobre e para Julia Zen, das maiores amigas que a vida teve o prazer de me dar. Juzen, como chamamos ela, é aquela amiga que faz acontecer os encontros, que faz a gente lembrar da importância de estar junto. Mas, ao longo dos últimos tempos, temos nos encontrado menos, pelas transformações do cotidiano.

A canção nasceu quando eu estava pensando nos nossos amigos e nas mudanças que aconteceram com a gente, mas sobretudo no amor, encontros e memórias que seguem nos unindo. Ainda que venha de um lugar pessoal, é uma realidade universal. Quando eu tocava ela nos meus shows solo, costumava chamá-la de “música da amizade”.

Fiz quase toda numa sentada, com papel e caneta, e mandei pra ela – algo raro pra mim, um dependente das notas do celular. O riff (que me lembrava uma mistura de Michael Bublé com Quem Tem Medo do Lobo Mau?) eu tinha feito um pouco antes e já rondava no meu gravador. Curiosidade simbólica pra mim: uma das handycam que usamos pra gravar materiais do disco (e da minha vida, como um todo) é de Juzen, que empresta a câmera pra mim e nossos amigos desde 2018! Obrigado!

“Viciado em Carinho”:

FELIPE: pra mim, é prima de “Quem Vai Apagar a Luz” (composição de Sophia), mas um filhote parido por um romance extraconjugal entre Rita Lee e Jorge Ben Jor. Gosto da brincadeira que a gente fez com a letra dessa música envolvendo suportes midiáticos (disco, capa, filme, cartaz) em metáforas de amor, conforme os problemas associados às materialidades, falhas e limitações (disco arranhado, filme queimado) das mídias em si, com inspirações de clássicas do Kinks e Blur.

SOPHIA: Adoro que é a gente tocando todos juntos ao vivo. Eu improviso bastante na voz no fonograma e isso é porque eu tava gravando violão e voz ao mesmo tempo. Achei que depois ia gravar outro take em cima da bagunça, mas acabei gostando das imperfeições desse take. É bem sincerão e tem a ver com a gente tocando realmente, tem esse frescor do ao vivo.

“Tempestade de Verão”:

SOPHIA: Essa compusemos on-line, eu mandei até a parte do “desafinado, assoviando, novas canções que eu ainda não acabei” e o restante é do Vaqueiro. Quando chegou a letra dele eu tive certeza que a gente tinha que fazer um trabalho juntos, até então a gente não tinha essa pretensão. Eu acho ela muito Almodovariana, tava numa brisa específica com os filmes dele, esse recurso ultradramático e brega.

FELIPE: Primeira vez que fizemos uma música a distância e primeira vez que compusemos uma música juntos. Essa canção foi o que provou pra nós mesmos a nossa química de composição. A sacada da Sophia da metalinguagem e trocadilhos com notas musicais me cativou muito. Foi um verdadeiro laboratório, sinto que ainda vamos nos divertir muito propondo novas coisas para a sua versão ao vivo, quando estamos no palco.

“Buracos”:

FELIPE: Uma música muito pessoal, sobre um sentimento muito universal dentro das relações entre as pessoas. O entendimento de que nossos buracos, vazios e questões só podem ser preenchidos e superados por nós mesmos. É doloroso compreender que a gente, mesmo com todo amor do mundo, não pode fechar os buracos no peito dos outros, e vice-versa.

A máxima do ditado nordestino “cada cachorro que lamba a sua caceta”. Um amigo meu sempre gostou dessa canção por ser uma música de amor que questiona o teor incondicional e irrevogável que foi canonicamente representado na ideia do “amor romântico”, ele dizia que era honesto, uma noção de amor, ainda que romântico, mais amadurecido e real.

Sonoramente, sinto que a música reflete minha obsessão pelo violão de Baden Powell que carrego desde os 16 anos (mais tarde fui percebendo suas origens em Dorival Caymmi) quando fui atravessado pelos Afro-Sambas (1966).

“Quantos Serão No Final?”

SOPHIA: Se tem um assunto que eu e o Vaqueiro conversamos desde que ficamos amigos, é a situação inacreditável do povo palestino nos dias de hoje (e há mais de 70 anos). Somos grandes apoiadores e admiradores da resistência palestina e do povo árabe como um todo, que enfrenta as piores brutalidades promovidas pelo imperialismo estadunidense no último século. Mas essa situação me dá muita raiva, ainda mais porque sabemos que a tecnologia de morte usada lá é a mesma que é usada em outros países do sul global, como no Brasil.

Nosso governo gasta milhões de reais comprando armamento israelense para reprimir manifestações e assassinar muitos jovens pretos e pobres na periferia, numa lógica muito parecida com o apartheid que acontece na Palestina. Essa conexão entre realidades tão distantes por via das “bombas de gás, mísseis e mais” é o que eu quis demonstrar nessa canção, e perguntar uma pergunta terrível que é: quantas pessoas serão mortas pelas armas israelenses até que se faça alguma coisa?

FELIPE: provavelmente uma das minhas prediletas, lembro muito dos saltos que essa música foi tendo. Amo ela desde quando So me apresentou, crua, no violão. Gosto muito de como a letra leva isso pro campo da denúncia, terminando os versos com o questionamento que batiza a canção. A agressividade que ela ganhou no arranjo faz jus as palavras coletadas por Sophia, é pra rasgar mesmo. Pro meu lado guitarrista, foi um prato cheio pra brincar com tudo que chupei de sons como King Gizzard e Altin Gun.

“Canção de Retorno”:

SOPHIA: Essa música tem uma história bonita. Tenho uma amiga síria chamada Yara Ktaishe, que ficou 10 anos sem poder voltar para Síria por conta da ditadura do Bashar al-Assad. No dia 8/12/2024, a ditadura foi derrubada por forças opositoras e finalmente ela pode voltar para a Síria, como outras pessoas refugiadas. Quando o Vitor Araújo me contou que ela ia poder viajar para o país dela fiquei muito emocionada com a notícia e escrevi essa canção, pensando principalmente na loucura que é não poder “‘pôr os pés” em determinado território. Fiquei imaginando um pedaço de chão pedindo desculpas…

Senti muita esperança naquele dia. Eu lembro que logo depois (15/1/2025) teve o cessar-fogo na Palestina – que na época parecia se encaminhar pro começo do fim do genocídio palestino. Foi um momento de extrema esperança pra mim, e essa música foi uma forma de externalizar essa esperança e essa utopia de que um dia as pessoas serão iguais e as cidades, os povos, os países não serão destruídos pelo sanguinário imperialismo estadunidense. Por isso que ela vem depois de “Quantos serão no final?”.

FELIPE: Talvez o fonograma mais experimental do disco. O fluxo de construção dele oscilando entre o caos e a calma. A intro do início dela é um recorte das guias que Sophia e eu fizemos, sampleado, adulterado e executado ao vivo por Cabral, seguida por um buraco negro de guitarra e ruído, elétricos, que sempre me evocam Lou Reed e ate Captain Beefheart… tudo isso pra aterrisar numa das letras mais diretas, fortes e sinceras que Sophia escreveu.

“You Never Know”:

FELIPE: Canção da leva de composição que acabei desenvolvendo em São Paulo, quando fiquei hospedado na casa de Sophia, em março de 2024. Ainda envolto na ideia de brincar com inglês e português, nasceram os versos iniciais que nomeiam a música, e foi fluindo.

A gente nunca entende, sabe ou percebe ao certo quando é que a gente passa a saber mais, a entender mais sobre um assunto, a ganhar profundidade. E o saber aqui não tem muito da ideia momentânea da “eureka”, mas sim sobre o processo de aquisição da sabedoria e astúcia. A gravação levou ela pra um lugar etéreo quase andarilho que tem tudo a ver com essas ideias.

O tema instrumental (que penso que me foi inspirado pelo estilo de Paulo Raphael) nasceu junto com a composição. No final de tudo, num mix de ousadia, clichê e vontade de espalhar easter eggs, tem um som emitido pela Handycam. Não qualquer som, mas o que ela faz pra sinalizar o término da gravação de vídeo, não resistimos. Se você se atentar, conseguirá ouvir o som de abertura/início de gravação emitido pela câmera, em algum momento da primeira faixa do disco… mas isso aí cada um tem que encontrar.

SOPHIA: Quando ouvi “You never know”, tive certeza que tinha que ser a última música do disco, ela é um encerramento perfeito pra mim. Quanto mais você sabe menos você sabe. É uma verdade linda sobre o conhecimento e acho que o Vaqueiro conseguiu traduzir muito bem essa sensação…

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01/10/2025

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