Lançado no início do mês, Areia e Voz (2025) é o segundo álbum de Tori, produzido por ela e Domenico Lancellotti. No próximo dia 11/11, a cantora apresenta o repertório na Bona, casa de shows em São Paulo, com participação de Nina Maia e Francisca Barreto [ingressos aqui]
Entre paisagens sonoras e sentimentos à flor da pele, Tori entrega um álbum íntimo e sensível, no qual cada faixa ecoa como um sussurro ao pé do ouvido. “Enquanto compositora sinto o ato de criar e viver música como praticamente inevitável. Canto, faço sentido, depois perco o sentido e assim sucessivamente”, comenta, em entrevista à Noize.
O trabalho conta com participação de Nina Maia, Francisca Barreto, Guilherme Lirio, Bernardo Bauer e Julia Guedes. A participação de Julia, neta de Beto Guedes, dá o tom MPB/Clube da Esquina da primeira faixa, mas o disco também tem algo de bossa nova e até um toque de psicodelia. Já a banda tem Tori nos violões, Lancellotti, nas baterias e percussões, e Francisca, nos cellos.
Com voz delicada, a cantora cria uma paisagem íntima e mergulhanas emoções. É um convite para escutar o silêncio que canta e o som que se desfaz como areia entre os dedos. Entre sonhos, Sergipe e Clarice Lispector, ela consolida sua identidade na nova MPB.
Areia e Voz faixa a faixa:
“Rios Aéreos”: essa é a canção mais antiga do disco, lá de 2022. Nasceu como um poema: fui numa exposição de Sebastião Salgado e fiquei encantada com a parte em que ele mostrava os rios aéreos, fenômeno da floresta amazônica. Água subindo das árvores para atmosfera e serpenteando o céu. Logo que fiz, enviei para o Domenico musicar. Senti que ela pedia a energia de arranjos como aqueles do “Via Láctea”, de Lô Borges. Foi esse o norte que dei aos músicos, e acredito que a presença de Julia Guedes e Paulo Emmery foram providenciais para alcançarmos essa energia.
“Ilha Úmida”: um presente que ganhei de João Bernardo. Nunca tinha vivido essa experiência de intérprete, receber uma composição pensada para minha interpretação. Eu amei, rearmonizei e criei uma ponte instrumental que transformou a canção numa parceria nossa. Na gravação das bases, ela surpreendentemente foi das que deu mais trabalho, acho que até pelo fato dela já falar muito enquanto canção crua, e de ter sido tão tocada apenas no violão. O vazio inicial da faixa, que começa só voz e vassourinha, foi uma saída linda (arenosa e espacial) que Domenico apontou para resolução desse arranjo, que continuou fluidamente com o cello de Francisca Barreto e o piano de Julia.
“Areia e Voz”: parceria com Pedrinhu Junqueira. Estava em Aracaju, no finalzinho de 2022, quando a letra me veio num fluxo de consciência, de uma vez só. Nesses quase 3 anos de digestão, os sentidos dessa canção cresceram muito dentro de mim. Entendi que ela é o mote do disco. Nessa música e durante todo o álbum eu coloco lado a lado areia e voz como agentes que, levados pelo vento, criam paisagens. Convidei Nina Maia pra cantar comigo essa canção porque amo o canto dela cheio de ar!
“Júlia e Bebéu”: é uma homenagem a meus avós maternos. Não cheguei a conhecer meu avô, que partiu quando eu tinha um ano. Pelas histórias, construí um vovô Bebéu doce como a ambrosia de tia Maria. Vó Júlia, por sua vez, eu tive a alegria de conviver por muitos anos e presenciar a brabeza que pra mim também carregava uma grande doçura. Existe uma intenção por todo o disco, a de misturar o doce da voz a ruídos arenosos, que aparece mais uma vez nessa canção. Dessa vez especificamente através da poesia que brinca com a doçura e a brabeza dos meus avós.
“O Som de Quem Dorme Bem”: Guilherme Lirio me enviou a harmonia e melodia dessa faixa (que já devem ter uns 10 anos de existência). Comecei a letra num momento em que percebi o quão sagrado pra mim era dormir e sonhar. Sinto que essa é a música que mais se conecta com o Descese.
Amo o contraste entre a calmaria e as várias camadas de som que vão se apresentando. Quando Guilherme me mostrou a música, ela tinha um violão bossa-novístico. Quis levar pra um outro lugar, com referência em “Every Single Night”, de Fiona Apple. Queria criar esses espaços entre os acordes. Pra mim o som de quem dorme bem seria justamente o quase silêncio da respiração.
“Discreta Paz”: ler Clarice Lispector despertou em mim um apreço por termos como “felicidade terrível”. “Discreta paz” tem pra mim esse sentimento. Compus essa música indo e voltando da cachoeira da gruta, uma espécie de oração. A primeira intenção que tive pra ela foi a de criar uma paisagem de noise, e me veio Ricardo Dias Gomes como referência.
Acabei criando um violão pra ela, com Francisca no violoncelo. Captamos a voz de Chica também de dentro do cello, passando pelos pedais de Manso. É um respiro no disco, e a única em que gravei voz e violão juntos, num take só.
“Repouso”: essa foi a última música a entrar no disco! Nasceu em agosto de 2024, em Belo Horizonte. Contrariando o nome, é uma das mais dançantes. Absolutamente influenciada por BH e principalmente por Julia, é uma música cheia de acordes suspensos. O que enxergo nela é justamente uma paisagem cheia de pássaros voando. E a imagem que trago da paixão é a do pouso de um pássaro na mão.
Logo quando comecei a música, mostrei a Bernardo Bauer, que ganhou a missão de dar continuidade a ela, em música e letra. Amei muito o que ele criou! Fui surpreendida por Domenico, pelo groove que ele trouxe pra canção. Imaginava que a música caminharia por um lugar mais calmo, mais Joyce e Nelson Ângelo, e quando vi, chegamos num lugar muito mais Erasmo Carlos.
“Trastejo”: essa é uma das únicas músicas de romance que compus na vida! Fiz pra Toro, que grava todos os baixos do disco. Compus em idas e vindas entre Rio e Aracaju. Quando ela nasceu, achei que tinha a ver com “Quando Olho para o Mar”, de Alceu. Um dia eu tava na praia e me veio o riff da guitarra na cabeça.
Chegamos a tocar em show eu e Toro, violão, baixo e synth – muitas músicas foram experimentadas primeiramente nessas circunstâncias, e muitos arranjos nasceram do baixo – e depois de um tempo ficou claro pra mim que aquele riff precisava ser tocado por Julico, da The Baggios, que tem uma guitarra única e que bebe muito da psicodelia de Alceu. É nessa faixa que entram os metais de Aquiles Moraes, tão presentes no meu disco anterior. Essa é uma música que me transporta a Aracaju. A depender do dia, minha preferida!
“Harmonia é do Mundo”: Um dia, Toro tocou uma sequência de acordes no violão e eu comentei que parecia uma música de Domenico e Bruno di Lullo. A isso ele respondeu que “harmonia é do mundo!”. Fiz uma nota mental e depois compus essa canção. Ela acabou se tornando muito sobre Aracaju, e como existe em mim uma cidade entranhada que guia meus caminhos melódicos.
Mais uma vez se apresenta o contraste de uma calmaria inicial com um rock quase caótico no ápice da música, que pode acentuar a tamanha desarmonia que é o mundo em constante guerra. Tive como referência para o início da faixa os diálogos entre piano e violão no primeiro disco dos Tribalistas, e senti que aquele rock final chamava as guitarras icônicas de Pedro Sá, que além disso nos deu a honra de cantar num grave absoluto quase inaudível de tão grave!
“Cartografias”: aqui eu trago uma declaração absolutamente trivial: “a Bahia tem muitas cidades”. A maneira de se referir às cidades tem desdobramentos na maneira da gente se relacionar com o mundo. Essa é uma declaração de amor a Aracaju, que é abrilhantada pela sanfona de Mimi do Acordeon.
Na faixa eu referencio diretamente Allan Jonnes, um dos meus poetas preferidos: Areia para Engrenagens é um livro dele cuja intenção poética é lubrificar as engrenagens do mundo com areia, para que elas falhem. Com o disco, tenho a intenção poética de fazer o mesmo e, no final, declaro que as canções não me eximem do atentado.