Manter-se em uma cena que viu de perto seu nascimento, amadurecimento e transformação não é tarefa simples. Essa é a história do Vanguart: com mais de 20 anos de estrada, o grupo que um dia foi queridinho da MTV, atravessou o tempo — e até o fim da própria emissora — mantendo-se firme na estrada.
Entre pausas e recomeços, o hoje duo (formado por Helio Flanders e Reginaldo Lincoln) lança Estação Liberdade (2025), álbum produzido por Rafael Ramos. Foram três anos até que o projeto, marcado por uma produção mais cuidadosa e pela maturidade da nova fase, ganhasse forma.
Pelas 12 faixas, o álbum passeia por histórias de amor, nostalgia, perdas, recomeços, amizades e narrativas fantásticas. Em Estação Liberdade, diversas experiências passam pela caneta — e pelo violão — dos integrantes. O disco ainda traz participações de Alberto Continentino e Rodrigo Tavares, e evoca inspirações literárias de nomes como Andrea Gibson e Horácio Quiroga.
Estação Liberdade é o sétimo álbum do grupo, que ainda traz Vanguart (2007), Boa Parte de Mim Vai Embora (2011), Muito Mais Que O Amor (2013), Beijo Estranho (2017), Intervenção Lunar (2021) e Oceano Rubi (2022). Para além dos autorais, o duo tem Vanguart Sings Bob Dylan (2019), álbum de releituras do músico norte-americano.
O Vanguart nasceu em 2002, quando Helio e Reginaldo ainda eram adolescentes. De Cuiabá, eles passaram a excursionar o Brasil com seu folk à brasileira. A estreia, em 2007, foi eleita pela Folha de São Paulo um dos 50 álbuns mais importantes da década.
Estação Liberdade faixa a faixa:
“Estação Liberdade”
HELIO: escrevi o esboço desta canção em 2023, e ela inicialmente era uma clássica história entre um casal que se separa, um amor que se encerra de forma bonita, onde ambos se curaram com o relacionamento, e, no fim, uma deixa para o outro um bilhete dizendo “o nosso amor vai surpreender o fim”.
Quando estávamos na pré-produção, me dei conta que se encaixava perfeitamente no nosso retorno, após um tempo parado, então acaba sendo também uma canção sobre a própria história do Vanguart, após 20 anos de estrada. Amor que se divide para voltar a amar; amor que se reencontra em outra configuração, amizade, plano.
“A Vida É Um Trem Cheio de Gente Dizendo Tchau”
HELIO: comecei a deixar um violão ao lado da cama, e certa noite, dez minutos após pegar no sono, algo me acordou, e era essa melodia do ‘lalala’. Parecia alguém soprando esses versos no meu ouvido. Gravei meio dormindo e no outro dia fiquei ouvindo, a música estava praticamente pronta. A letra é uma reflexão sobre essas idas e vindas, na vida, na morte, as pessoas que partem, mas também sobre as pessoas que retornam. Reginaldo sugeriu a segunda parte harmonicamente, e os versos vieram meio que automaticamente.
“Luna Madre de la Selva”
HELIO: acredito que nasceu porque estava relendo Cuentos de la Selva (1917), do escritor uruguaio Horácio Quiroga, que comecei a escrever essa saga do viajante na floresta, que no meio da escuridão é guiado pela lua, e faz nela seu refúgio — aproveitei para trazer imagens referentes a ela: marés, planetas, chiaroscuro, e essa eterna dualidade entre tristeza e alegria que faz parte da nossa vida. Gravamos inicialmente em espanhol, mas no fim quisemos ter uma versão em português por crer que a letra soaria mais forte.
“O Mais Sincero”
REGINALDO: às vezes, o óbvio precisa ser dito em voz alta, e redito inúmeras vezes se forem necessárias. Às vezes, basta apenas um olhar. É sobre ter alguém com quem se importar, muito. Acho que é uma das canções mais fortes do disco, direta, sem rodeios, mas, ao mesmo tempo, bastante poética.
“Noites de Domingo”
HELIO: essa canção, assim como “O Mais Sincero”, fala de um amor bonito, protetivo, e sobre ter alguém que enternece o que a gente sente, que você sabe que está lá, até nos momentos mais duros, neste caso, uma noite de domingo. No começo me incomodei com as rimas serem quase todas iguais, mas depois entendi que isso era parte do recado da música; um positivismo de cuidado.
“Rodo O Mundo Todo no Meu Quarto”
HELIO: a primeira que arranjamos no estúdio, já com o Arquétipo Rafa na bateria, e foi muito natural. Ela já nasceu no violão com essa pegada meio valsinha, e durante os ensaios eu sempre ia improvisando uma letra diferente — assim como “Luna Madre de la Selva”, ela possuiu muitas versões de letra até chegar numa decisão final.
Gosto muito do fator lúdico dela, e acredito que as pessoas podem se identificar com ela, ainda mais hoje em dia, onde estamos habituados a construir mundos próprios em nossos quartos, com a internet e AI. No fim, também fala sobre a força que temos em seguirmos fortes e dentro de nós mesmos, ainda que estando sós. Os arranjos de sopro são do ídolo Alberto Continentino. O realismo fantástico vivido pelo personagem nos leva a crer que a solidão não é um castigo, mas sim uma porta aberta para a felicidade.
“Pedaços de Vida”
HELIO: é a canção mais experimental do álbum e a mais densa. Pensamos se ela era “Vanguart” o suficiente, e a resposta foi positiva, pois sempre abraçamos canções assim em outros álbuns, como “Pancada Dura” em Beijo Estranho (2017), e “Miss Universe” no nosso álbum homônimo (2007). Importante destacar o incrível trabalho dos sintetizadores do Rodrigo Tavares nessa faixa. Em alguns momentos me questionei se a letra não era muito pesada, mas depois entendi que o forte do álbum estaria em conter justamente esse contraponto entre músicas mais carregadas em lirismo com canções mais leves, como “Noites de Domingo”.
“Obrigado”
REGINALDO: não me recordo de ter escrito essa canção. Ela apareceu nas gravações do meu celular, quase toda pronta e eu ainda busco na memória o momento em que ela chegou. Ao ouvi-la, lembrei de um amigo que já se foi e ela se tornou uma homenagem a ele. Talvez seja nosso momento mais Neil Young — uma das favoritas, certamente.
“Rua do Passado”
HELIO: Reginaldo chegou com a ideia dessa música, verso e refrão, e fomos construindo a letra juntos. Acho que ela se encaixa bem na ideia do disco de olhar para frente sem esquecer o que se viveu, e, no fundo, prestar atenção às coisas que mais importam; o amor e o cuidado.
“Guaxinim”
HELIO: nunca escrevi uma música tão íntima — ela consegue quebrar inclusive meu modo de pensar como fazer uma canção de amor, de tão despida que é/está de toda e qualquer vaidade, acho que por isso gosto tanto dela. Ela foi escrita em 2019, num take 1, e a gravação é 100% fiel à original, ao piano, e com a mesma letra.
“Canção do Estetoscópio”
REGINALDO: quando comecei a compor era sobre a história de um sentimento que chega devagar, sem avisar. Era um simples “vou te chamar” para a gente fazer algo juntos qualquer dia…O Helio a transformou com intensidade nessa tormenta que arrebata e inebria quando trouxe a ideia do estetoscópio de um poema da poeta norte-americana Andrea Gibson.
“Se Quiser Seguir Comigo”
REGINALDO: foi a última a ser composta para o álbum. Começamos a tocar os acordes e as ideias apareceram. Contém algumas citações autobiográficas sobre as estradas percorridas nesses anos de banda e de amizade.
HELIO: Puxei a ideia dessa música no violão e desencanei, Reginaldo voltou e disse: ‘Ei, tem algo legal aqui!’, e por insistência dele pegamos a gravação e trabalhamos nela. Foi no esquema clássico de tantas canções que fizemos: os dois no violão, cantando a letra em loop.