Poucas celebridades rendem manchetes tão icônicas quanto a atriz Vera Fischer. Títulos como: “Vera Fischer: o drama de uma mulher gostosa” (nos anos 2000, na extinta revista Manchete) ou “Vera Fischer admite: só gosto de homem pobre” (nesta semana mesmo, no site Metrópoles) provam que ela segue causando e vivendo como ninguém. E suas personagens? Não tem como esquecer da Yvete, de O Clone (2001), que eternizou a frase: “DJ, toca um techno aí!”. Momentos marcantes.
Talvez inspirados por toda essa personalidade, quatro jovens de Niterói (RJ) — Crystal (vocal), Malu (baixo), Pek0 (beats) e Vickluz (teclas) — decidiram batizar a banda que montaram de Vera Fischer Era Clubber.
A estreia veio com o álbum Veras I (2025), entregando um som noturno, dançante e caótico que vem ganhando holofote: Em uma entrevista à Veja, o repórter pergunta se Vera Fischer (a atriz) sabia que virou nome de banda. Ela não apenas responde que sim, como garante: “um dia vou no show deles”.
Pois a gente recomenda, Vera: vá mesmo. A performance contagiante, junto às excelentes bases de eletropop, punk e muito sintetizador, entrega um show cheio de energia, com gostinho de noitada em algum inferninho do Rio de Janeiro.
A banda carrega a presença e o carisma fluminense, tal como fizeram Fernanda Abreu ou Fausto Fawcett, mas com um toque de No Porn e CSS. Por cima das bases, Crystal manda spoken words espirituosos e autodebochados, como: “Era uma vez uma menina chamada Ina / e sua amiga, Coca” (em “Ina”), “É que eu falo com fantasmas e meu ex é um zumbi” (em “Fantasmas”), ou “Eu sem depressão sou ótima” (em “Eu Sem Depressão”, que fecha o disco entre loops de pensamentos e riffs de baixo).
As referências, digamos, conceituais da banda — para além da própria Vera Fischer — passeiam por Lindsay Lohan, Paris Hilton e Courtney Love, algumas das celebridades citadas na faixa-título. Mas por que logo elas? “São ícones do caos que se sobressaíram na cultura pós-apocalíptica conhecida como cultura pop“, nos explica Crystal. “Elas inspiram uma atitude punk já desconectada dos ideais do movimento original. É um apelo subversivo: um berro menos afirmativo e mais existencial.”
Uma van e um sonho
Entre julho e agosto, as Veras caíram na estrada com Dora Morelembaum e Iorigun durante a segunda edição do Circuito Nova Música — projeto com curadoria de Lúcio Ribeiro, que visa integrar talentos em ascensão no underground a casas de show do interior de São Paulo. Na essência, é a boa e velha road trip: músicos dividindo espaço com os instrumentos numa van, vivendo todas as aventuras de uma turnê.
A pedido da Noize, a banda nos mandou algumas fotos das passagens por São Paulo (31/7), São José dos Campos (1/8), Americana (2/8) e Campinas (3/8), e respondeu algumas perguntas sobre essa experiência. Confira tudo abaixo:
O show do Vera Fischer é cheio de energia, vi muita gente elogiando no festival Popload. Como é pra vocês tocar ao vivo? É a parte favorita de ter banda?
Pek0: A troca com o público nos shows é incrível. Nosso processo de composição foi feito ao longo de um ano experimentando propostas, testando com o público e vendo o que funciona. Até hoje, sinto que exploramos isso. Cada cidade é um público diferente, com isso, a recepção também é diferente. Aprender com essa troca é a minha parte favorita de ter uma banda, claro, para além de construir ideias e nos expressarmos!
Vickluz: Pra mim, o show é sempre uma oportunidade de me superar como artista. O palco é o espaço que tenho pra lidar com as minhas inseguranças e testar os meus limites. É incrível ter o retorno do público e tudo isso é alimento para o nosso trabalho ser cada vez mais potente.
Crystal: Para mim é, definitivamente ,uma das melhores partes! O show ao vivo é um ritual de expurgo muito forte. Um estado de transe que só se quebra quando eu desço do palco completamente exorcizada pela experiência.
Malu: Simmmmmmmmmmmmmm!!!!!!!!
E como foi tocar no Circuito?
Peko: Foi uma das melhores experiências da nossa carreira, uma das mais intensas, também. Quatro shows, quatro cidades diferentes, acordar cedo, dormir tarde. Foi puxado! Mas independente da intensidade, a experiência foi incrível. Os outros projetos musicais são incríveis, tivemos trocas maravilhosas, tanto com os meninos do Iorugun quanto com a Dora. Uma equipe espetacular! Ficamos literalmente apaixonadas. Viveria um mês circulando com essa galera, trocando ideias, criando músicas, se divertindo e, claro, tocando juntas!
Vickluz: Eu amei! Conhecemos artistas e profissionais incríveis, espalhamos nosso trabalho por lugares que tivemos a oportunidade de tocar pela primeira vez, e ainda nos divertimos muito! O Circuito é um projeto incrível que agregou demais à nossa experiência como banda.
Crystal: Foi intenso, 4 dias de shows seguidos não é brincadeira! É muita energia sendo gasta e recebida. As trocas, no entanto, servem de recarga! Os outros artistas com quem estávamos viajando e a equipe do Circuito, da pessoa que cuidava do aspecto mais técnico até a responsável pelas mídias, são pessoas maravilhosas. Até o fim da viagem, todos nós já ficamos amigos! São pessoas com quem vamos manter contato, com certeza! O trabalho e o sentimento de realização que vêm dele, principalmente sendo coletivo, geram laços muito verdadeiros e aproximam muito. Foi uma delícia.
Malu: foi maravilhoso. É muito bom estar com pessoas em torno da música. O público foi bastante acolhedor e carinhoso, assim como os outros artistas e a galera toda do backstage.
Como são criadas as bases e as letras das músicas? O que inspira vocês nesse processo?
Crystal: As letras do álbum Veras I têm início na improvisação. Com a repetição de propostas para tocarmos mais e mais vezes, eu sintetizei alguns dos assuntos dos improvisos que mais tinham resposta do público e os transformei em histórias, em letras. No geral, utilizei as experiências em comum que tínhamos como amigas para a construção do universo apresentado no álbum. Bordões e situações foram desdobrados, ampliados de um fragmento para um universo que conta a história do cair da noite.
As letras vêm de nossas experiências e vivências juntas no clube, onde nos conhecemos e viramos grandes amigas.
Peko: A partir das letras, buscamos criar uma atmosfera que mostrasse toda a ideia. A gente vai experimentando sonoridades, vendo o que combina. Num geral, cada uma contribui com a sua visão da música e, juntas, vamos experimentando, até chegar num lugar que todas se amarrem.
Vickluz: Como tecladista, tento amarrar o sentimento da letra com determinados timbres e melodias. Às vezes é sobre deixar ficar explícito, como nas faixas “A gata agora”, “Fantasmas” e “I Lololove U” — nelas, isso está muito bem representado. Nas outras, busquei criar um clima de transe e tensão, o que flerta muito com a performance da Crystal e todo o instrumental da banda. Todas simpatizaram com essa estética desde as primeiras jams.
Malu: nosso processo é bastante diverso e nos inspiramos em muita coisa diferente. Batemos tudo no liquidificador e vamos experimentando de acordo com o que sentimos.
O som de vocês já mostra as refs da banda, que vão de Lindsay Lohan à própria Vera Fischer. Sonoramente, vocês são comparados ao No Porn ou Teto Preto. Vejo também algo de Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, uma coisa meio Copacabana distópica, punk. Como vocês amarram tantas referências legais e distintas para caber no conceito de vocês?
Pek0: A própria formação da banda já é muito sobre isso. Cada uma vem com suas referências próprias — claro que temos nossas referências em comum, mas trocamos muito. A Pek0, por exemplo, gosta muito de MPB e artistas nacionais, Malu traz muitas referências de post punk, a Vickluz adora um pop bem eletrônico, e Crystal tem referências maravilhosas de intérpretes e cantoras como Fiona Apple, Charli [xcx], Lana [Del Rey]. Com tantas referências individuais, que, ao serem compartilhadas, deixam de ser individuais e se tornam coletivas, o resultado acaba sendo esse.
Crystal: As referências pessoais acabam se refletindo e formam uma experiência sonora não guiada pelo objetivo de atingir ou pertencer a um gênero – de tal forma que a classificação é feita sempre pelos outros e depois de termos feito o trabalho, nunca por nós, durante o processo. Sobre as referências citadas propositalmente na track “Vera Fischer…”, o objetivo é passar um tipo de cartilha de ícones do caos, conhecidos por terem sobressaído na cultura pós-apocalíptica — conhecida como cultura pop — e que inspira um tipo de atitude punk já desconectada daqueles ideais do movimento original, mas com apelo subversivo. É um berro menos afirmativo e mais existencial. Ícones do mal comportamento misturados com refs estéticas que exibem feridas existenciais envelopadas pelo deboche em uma era esquizofrênica. Isso fala muito — se é que não resume — o clima de Veras I e do que é se jogar na noite no início dos 20 anos. Uma mistura de atitude, sede pela vida e falta de direção, mas muito caminho. Acho que as referências amarram a ambientação do álbum populando-o com personagens.
Malu: não tem um conceito definido, mas todas somos muito ligadas à estética em geral. Acho que cada uma com uma perspectiva diferente e ao mesmo tempo convergente (pois somos muito amigas), conseguimos fazer a magia acontecer sem precisar pensar num conceito pré-definido, fixo. Hoje temos essa estética, mas pode ser que amanhã estejamos fazendo um som que não tem nada a ver com o que fazemos hoje. Somos malucas e efêmeras. Mas acho que a sensibilidade particular de cada uma faz com que as referências se amarrem de forma “coesa”.
Pra fechar: tem gente falando que a noite morreu. O que vocês têm a dizer para essas pessoas?
Pek0: A noite é uma metamorfose, ou pelo menos deveria ser. Existem muitas propostas de novas sonoridades e cabem às pessoas estar abertas, tanto a buscar quanto a consumir. Depois da pandemia, tudo esfriou demais. Todo mundo saiu desse período mudada. Vejo hoje artistas que trabalhavam como DJs criando projetos de live act, trazendo esse valor do ao vivo para a pista de dança. Acho isso muito lindo, muito rico. Gostaria de ver as pistas de dança de festas mais preenchidas por shows de artistas. Não desvalorizo uma boa discotecagem de forma alguma — muito pelo contrário. Só digo que fico feliz em ver, cada vez, essa mistura da música eletrônica com outros gêneros. Até mesmo quando não são propostas para a “pista de dança”. Pista de dança entre aspas, porque cada uma faz a sua pista, não é?
Vickluz: Isso é mentira. A verdade é que a noite está cada vez mais inacessível: sair para se divertir, frequentar um clube, tudo isso virou artigo de luxo. Obviamente, a noite mudou, os formatos não são os mesmos de ontem. Porém, não é só sobre esse papo de bem-estar, autoconhecimento e novas escolhas. Acredito que seja principalmente pela precariedade da vida das pessoas e como elas não conseguem arcar com essa parte em suas vidas — ao ponto do próprio mercado sentir o baque fechando inúmeros clubes ao redor do mundo.
Crystal: Nada morre, tudo se transforma. A noite descansa mas, sempre volta. Enquanto a luz do dia for usada como instrumento de punição e julgamento, vai existir noite. Só não existe para quem não busca, para quem se contenta.
Malu: Pois então, fiquem em casa que é melhor. Chatas!