“Muitas vezes a versão de uma música que se populariza mais não é a primeira”, pondera Zé Ibarra. Em AFIM, seu segundo álbum, lançado no dia 5 de junho, o artista carioca interpreta canções de Sophia Chablau, Maria Beraldo, Tom Veloso e Ítallo França – além de suas próprias; uma delas, “Essa Confusão”, em parceria com Dora Morelenbaum.
“Tive vontade de expandir o meu universo subjetivo, pegar emprestadas as vozes dos outros e transformá-las a partir da minha própria voz, amplificando aquele discurso e aquele universo de composição”, reflete o músico.
Parte central desta reinvenção se dá na atuação de Zé como produtor. Após dividir o papel nas bandas Dônica e o Bala Desejo, o carioca assume a produção de AFIM, com coprodução de Lucas Nunes.
“Sempre e antes de tudo, sou produtor musical. É o meu maior sabor, onde me deleito. Quando uma canção nunca foi lançada, a produção musical não se revela tanto quanto em uma música que já circulou por aí. Porque você muda a roupagem toda”, afirma Zé. Além de cantar e tocar violão em todas as faixas, ele ainda adiciona teclado, bateria, percussão, drum machine e guitarra aos arranjos.
A banda base, que também contribui com a sonoridade final do trabalho, é formada por Lucas Nunes (órgão), Alberto Continentino (baixo), Daniel Conceição (percussão e bateria), Thomas Harres (bateria e percussão), Rodrigo Pacato (percussão), Chico Lira (rhodes) e Guilherme Lirio (guitarra). Há ainda os sopros do Copacabana Horns, formado por Diogo Gomes (trompete), Marlon Sete (trombone) e Jorge Continentino (sax e flauta).
“Eu quero me comunicar. Quero que a minha música seja pop de alguma forma. Pop no seguinte sentido: algo que sai de um comunicador e entra em um receptor, realizando um processo para que seja compreensível e sensível”, declara Zé.
Essa palatabilidade está nos andamentos suingados e nos refrãos intensos, mas convive também com outras características, como escolhas harmônicas que remetem ao cool jazz bossa-novista. Ao se distanciar da MPB voz e violão, trazendo arranjos encorpados, o artista ainda apresenta influências da música erudita, do rock, do samba e do soul.
O cantor preparou um faixa a faixa de AFIM, revelando os detalhes por trás da escolha e da produção de cada uma das músicas que compõem o repertório.

1. “Infinito em Nós”: A música mais antiga do álbum. Fiz essa canção em cinco minutos há oito anos. Escrevi para uma antiga namorada, um grande amor. O nosso relacionamento sempre foi bom, mas vivíamos um momento em que tudo parecia estar prestes a acabar. É uma canção feliz-triste. É dançante, tem esse balanço, mas também levanta uma pergunta: “Será que a gente está terminando?” Tem uma melodia que se repete, simples e bonita. Sinto que ela tem um groove bem brasileiro. Me lembra Bebeto, sambalanço… esse tipo de balanço que nem existe mais hoje em dia, mas que por um tempo foi muito forte — algo delicioso, super brasileiro, que mistura Jorge Ben e Banda Black Rio. Gosto porque sou um violonista “corajoso”. Não toco de forma virtuosa, não faço solos, nem nada disso. Meu negócio é o chacundum, a batida, e a música é perfeita para isso.
2. “Segredo”: Ouvi a versão da Sophia e, na hora, pensei em gravar. O refrão é espetacular, sintético, direto: “Mas se você quiser/ Eu viro um segredo seu / Não faço barulho/ Nem chamo atenção de ninguém.” Isso é Sophia pura. Suco de Sophia. Mudei um pouco as harmonias, para deixar mais próximo da onda que eu imaginava — mais puxado para o jazz. Tirei um pouco do rock. Tem um quê de Black Rio. O groove da música tem como célula principal o samba. É samba. Mas ninguém entrega esse samba — ele está só ali dentro da cabeça. Essa faixa teve um processo curioso. Gravei uma primeira versão megalomaníaca: com arranjos de cordas, sopros, uma loucura. Apaguei tudo. Refiz em dois dias, com a ideia mais maturada, de forma mais sintética. Quis trazer essa aura: jazz gravado, dançante, com um pouco de rock. Foi difícil cantar, porque o verso parece estar muito longe do refrão em termos de intenção. Demorei a entender como interpretar, mas no final acho que rolou.

3. “Transe”: É a música-tese do disco. Fiz num dia em que fui à praia e ela nasceu inteira na cabeça: letra e melodia. Veio de um momento em que vivi um ghosting absurdo. Foi um fenômeno que me marcou profundamente. É um transe mesmo — você entra num parafuso paranoico, de dor e angústia. Foi também a primeira vez que tratei, na minha discografia, de temas como loucura e paranoia. Assuntos muito conectados com o mundo de hoje. Essa música tenta refletir esse espírito do tempo. Por isso, a produção dela é bem diferente das outras. Menos linear, mais imagética. As coisas aparecem e desaparecem. Também há um lado cinematográfico, porque o arranjo caminha com a letra, acompanha a angústia que vivi por meses. É a faixa em que consegui colocar melhor esses “temperos” do pop estranho com jazz. Muita coisa acontece na música, mas a voz permanece sempre no mesmo lugar. Tento manter uma interpretação cool, mesmo dentro de um ambiente sonoro brutal e distópico. É tipo Chet Baker em 2034. Algo por aí.
4. “Retrato de Maria Lúcia”: É do Ítallo, e me apaixonei desde a primeira vez que ouvi essa música, há bastante tempo. E, diferente de outras faixas do disco, essa eu não transformei muito. Na verdade, escolhi essa música para ser o elo entre o meu eu do Marquês, 256. — o disco anterior, mais voz e violão — e o AFIM. Ela me leva direto para essas raízes, de voz e violão na escada, simples e verdadeiro. Gravei com meu parceiro infinito, o Lucas. Foi tudo ao vivo, em dois takes. E mergulhei intensamente na interpretação. É uma faixa muito crua, sou eu purinho ali. Sentindo a música, uma canção de amor linda. Sempre que gravo nesse formato mais livre, tem muito improviso. As melodias que surgem são em grande parte da hora, nascem ali. Claro que a canção tem uma melodia-base, mas ela vai para vários lugares durante a gravação. Foi muito lindo. Me emocionei no final. E estou feliz que as pessoas têm curtido, têm falado bastante dela.

5. “Da Menor Importância”: Quando ouvi Cavala (2018) pela primeira vez, achei essa uma das músicas mais geniais que já tinha escutado. Ela tem uma mudança de andamento que eu nunca tinha visto em nenhuma outra gravação. Fiquei muito interessado na figura da Maria Beraldo. Achei que aquele discurso também fazia sentido vindo de mim. Ela fala sobre gênero, mas principalmente sobre liberdade de desejo, liberdade de escolha, liberdade de visão de mundo. É um compasso 5/8 que vai se disfarçando no arranjo. Quando percebi isso, me lembrei da história do compasso em cinco na música brasileira, com Moacir Santos, pernambucano, e a Orkestra Rumpillez, que eu sempre adorei. Aquela coisa meio ancestral, meio tradicional, mas também muito brasileira. Quis trazer essa energia. E pensei numa sonoridade que não se usa tanto hoje em dia. Antigamente, por exemplo, no samba, tinha gravações com o baterista tocando só no hi-hat. Só prato! Então, pedi pro Thomas levar só um prato nesse dia. Ele amou a ideia. O Alberto Continentino fez o baixo, eu toquei os teclados, e o Diogo Gomes fez um arranjo lindo de sopros, que dialoga com tudo isso
6. “Morena”: Sempre amei essa música. Ela tem algo muito mineiro, uma sonoridade mais onírica, aérea, que eu imaginava inicialmente como uma produção suave, etérea, bem Minas. Mas em um dia de ensaio, tudo mudou. Estávamos tocando e o Gui Lirio fez uma frase que chamou minha atenção. Na hora, pensei: “Opa, isso aqui pode virar um beat”. Virei para o Thomas e falei: “Vai de beat, quero beat!”. Ele criou uma bateria bem marcada, mais dura, quase eletrônica. E o Alberto entrou com um baixo super sincopado, todo nos contratempos — assim como eu costumo tocar violão, sempre invertendo o tempo. Ele embarcou nessa, e o groove nasceu. Sempre senti que essa música tinha um potencial pop imenso. O refrão é grande, bonito e memorável. Queria trazer uma sonoridade meio anos 80, com aquele impacto emocional que o pop tem quando o refrão explode. É uma música que gosto muito, principalmente por causa do refrão, que pra mim é tudo. Nunca consegui esquecer a primeira vez que ouvi — ficou na memória como uma melodia que marca.

7. “Essa Confusão”: A Dora já tinha gravado essa música no disco dela e eu participei de todo o processo. Então, quando chegou a hora de gravar no meu próprio disco, precisei me reinventar. A versão dela foi para um lugar mais jazzístico, com arranjos exuberantes. Eu tentei ir em outra direção, algo mais sintético, com uma instrumentação reduzida e um clima misterioso, atmosférico. Foi a única faixa do disco em que eu mesmo gravei a bateria, algo que nunca tinha feito na vida. Passei por várias versões, deletei tudo mil vezes. A ideia era uma mistura de Tom Jobim com big band, tentando ser isso, ainda que sem a pretensão de alcançar. O refrão é puro pop, totalmente Tim Maia. “Olha, eu te amo tanto”. É uma faixa de duas caras: o verso seduz, provoca, cria tensão; o refrão é redenção, entrega, vulnerabilidade. O eu lírico se abre, se joga aos pés do outro. E essa contradição é linda. Gravei quase tudo dessa faixa — violões, teclado, bateria, percussão. Ela sintetiza bem o processo de reinvenção que esse disco me exigiu.
8. “Hexagrama 28”: Todo álbum meu precisa ter uma música de banda ao vivo. Acho essencial. A maior referência é Jorge Ben, que tem uns grooves únicos. Um groove com a caixa no tempo um, um jeito muito particular de tocar. “Cinco Minutos (5 minutos)” (A Tabua de Esmeralda, 1974) é a grande referência para essa música. Ela tem um jeito meio safado, uma reflexão existencial falada de maneira despretensiosa, quase como um grito, um desabafo. Faz sentido que fosse ao vivo, porque a energia da música cresce e explode no final, numa levada livre, com todos os instrumentos soltos. Gravei mellotrons para substituir as cordas. Essa música problematiza o disco, que é em grande parte sobre amor. É quase uma piada com esse tema, questionando como falar sobre amor sem realmente falar dele, ou como sair do amor. A Sophia tem versos incríveis, que eu dificilmente teria escrito. Eu me sinto vulnerável, sou carioca, falo muito palavrão, e na música eu mostro isso sem rodeios: “Eu sou frágil pra caralho”. É um desabafo honesto, essa é a essência da faixa.